sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Sua majestade o Ego: um eu-grandioso-exibicionista

Em 1914 Freud usou o termo “Sua majestade o bebê”, para descrever o lugar dado ao bebe na estrutura familiar. É em torno dele que tudo passa a girar. É a partir dele que se organiza a agenda da família. Além desse poder, “sua majestade o bebê” é revestida das projeções dos pais que esperam que ele seja e realize aquilo que idealizaram para si e sobre seu lugar no mundo. Freud fala, nesse volume da sua obra, sobre o narcisismo e a reprodução do narcisismo dos próprios pais sobre o(s) filho(s).

 

Na base do funcionamento psíquico infantil encontramos traços de megalomania, ou seja, de onipotência narcísica que é própria da constituição do ego. O ego infantil é revestido de um superinvestimento libidinal e se contrapõe ao, ainda, precário sentimento de identidade. Tudo está em desenvolvimento.

 

O narcisismo, enquanto superinvestimento libidinal do ego, para além da infância caracteriza um distúrbio no desenvolvimento da relação ego-Si-mesmo. Portanto, refere-se à questão de identidade. Nesse distúrbio encontramos “Sua majestade o Ego”, como compensação de uma identidade frágil que não se estruturou a partir de uma relação equilibrada entre ego e Self (Si-mesmo).

Fica evidente nesse desiquilíbrio a atitude defensiva contra prejuízos à tão frágil identidade . A expressão eu-grandioso-exibicionista traduz bem a identidade sentida como insuficiente. Através dele e de sua exibição a pessoa atrai para si olhares, reflexos da admiração de outros que a ela confirmam sua imagem idealizada.

Os aspectos dessa imagem idealizada variam de acordo com a personalidade de cada um. A beleza, a inteligência, o temperamento, a "santidade", a honestidade, a perfeição, o poder podem ser alguns dos aspectos em torno dos quais gira esse eu-grandioso-exibicionista.

A atitude da pessoa para consigo mesma depende muito do centro, através do qual gravita:

- Se acreditar que é a sua imagem idealizada tenderá a achar que é mesmo um espírito superior, um ser humano excepcional, cujos erros são como que divinos.

- Se sua autoimagem é baseada na comparação com a imagem idealizada tenderá a ser demasiadamente autocrítica, menosprezando a si mesma. Assim, frases como: deveria ter sentido, pensado, feito melhor são próprias dessa atitude e revelam que, no íntimo a pessoa está convencida da sua perfeição; portanto, se tivesse sido mais exigente consigo mesma ou mais isso ou mais aquilo, então...

Tanto numa situação, como na outra o eu verdadeiro está escondido da própria pessoa. O desiquilíbrio na relação ego-Si mesmo leva a pessoa a construir, inconscientemente, uma imagem idealizada de si estática, rígida. No equilíbrio dessa relação a identidade é uma construção, uma vez que o Si-mesmo é um padrão dinâmico, inacabável – um processo contínuo de individuação.

Nesse processo de individuação a busca é pela complementação da própria personalidade e não pela perfeição.

Ao contrário dos ideais autênticos a imagem idealizada, sendo estática é, certamente, um obstáculo ao amadurecimento - ou por negação das próprias deficiências ou por condenação delas.

Já os ideais autênticos, por serem dinâmicos, fazem com que queiramos nos aproximar deles. São indispensáveis, como impulso, para o nosso amadurecimento e desenvolvimento.

A função mais elementar da imagem idealizada é substituir a autoconfiança e o amor-próprio verdadeiros, dando ao ego uma sensação (artificial) de significância e poder. A onipotência, por isso, passa a ser uma crença infalível da imagem idealizada.

Surge com ela o impulso para se distinguir, para de algum modo sentir-se superior, de triunfar sobre os outros. Como o sentimento de vulnerabilidade é muito grande, traz consigo o medo da pessoa ser tratada com desconsideração e humilhação; assim, a necessidade de superioridade dá à pessoa um certo prazer sádico sobre os outros. 

 

Da mesma maneira que a majestade do bebê tiraniza os pais e as pessoas à sua volta a construção defensiva que coloca o ego como majestoso, como um eu-grandioso traz sérios prejuízos ao desenvolvimento real da personalidade, impedindo que a pessoa aprenda a lição com seus erros ou inadequações - uma vez que não os enxerga. Está sob a tirania desse eu grandioso a quem não interessa amadurecer. Aliás, a ideia de amadurecimento quando aceita tende a ser compreendia como obtenção de uma imagem idealizada ainda mais perfeita.

Deixar de estar sob a tirania do próprio ego, renunciar à imagem idealizada desse eu-grandioso-exibicionista só será possível quando a pessoa conseguir reduzir as necessidades que lhe deram origem. Geralmente, isso acontece quando toma consciência da base que formou a imagem idealizada e da função de suas defesas. E, finalmente, do sofrimento que inevitavelmente provocam. 

 

 

domingo, 18 de setembro de 2022

Confiança/ Quebra da confiança

Confiar é esperar, acreditar em alguém ou em algo no sentido do vínculo ou da capacidade de alguém (ou algo) cumprir sua função de maneira eficiente.

No caso de outra pessoa, que ela venha a honrar sua palavra, seu compromisso com a própria moral e com os próprios sentimentos em relação à outrem.

Confiar é ter fé. Fé implica em considerar algo como verdade, sem que haja prova ou critério objetivo de verificação.

Apesar, de o ato de confiar ser, também, um ato de fé - há de se considerar que temos alguns critérios objetivos para dar crédito às pessoas que fazem ou farão parte de nossas vidas.

Confiar, portanto, é uma via de mão dupla. Depende tanto do sujeito, como do outro da relação de confiança.

Esse sentimento, como tantos outros, é construído a partir das nossas primeiras vivências. Tecemos desde então vínculos de confiança nas pessoas e na vida. E tendemos a transferir, como crédito, parte dessa confiança adquirida, às pessoas e situações futuras.

Esse crédito incrementa a  idealização, as projeções que, naturalmente, são feitas sobre o outro e sobre as expectativas que temos em relação a ele - que, por sua vez, faz o mesmo caminho.

Ambos precisam partir da consciência de si e dos valores que os norteiam. Precisam ser capazes de fidelidade aos próprios sentimentos, escolhas etc. Antes de mais nada, portanto, devem estar comprometidos com a própria consciência.

Quando a confiança é depositada em algo esperamos que essa alguma coisa cumpra sua função e não falhe. Que nos ofereça segurança e eficiência. Nesses casos, mais facilmente, podemos nos assegurar que critérios objetivos foram seguidos e certificados. Entretanto, não estamos livres das falhas e/ou acidentes!

Ao confiarmos nas pessoas, precisamos sentir que contamos com elas, que vivenciamos segurança tanto nelas, como no vínculo formado com elas; além do que crédito que lhes damos por identificação e transferência, num primeiro momento. E, evidentemente, pelos sentimentos positivos que dirigimos a elas.

Aqui, também, não se está livre do imprevisível, daquilo que não se espera que aconteça conosco! Quantos não tiveram sua confiança quebrada por alguém que, até então, dava evidências da sua integridade, honestidade de sentimentos, sinceridade, lealdade, fidelidade? Quantos de nós não nos surpreendemos com as próprias quedas, agindo de maneira tão contrária ao que gostaríamos?

Que natureza a humana! O que move a traição de nós mesmos, quando buscamos a retidão? Por que falhamos? Quando isso pode acontecer? A que serve a traição da própria alma e da confiança conquistada?

A quebra da confiança traz consequências as mais diversas, incluindo a depressão, que pode se tornar persistente. Sentimentos de fracasso, raiva, culpa e as feridas narcísicas decorrentes dessa quebra deixam marcas que devem ser respeitadas, sempre que forem expressas.

Essa perda será vivenciada de maneira muito própria e a restauração desse sentimento não será possível para muitos!

Àqueles que ela for possível, ainda assim, será condição 'sine qua non' a ampliação do autoconhecimento, da consciência de si para que ambos saibam o que os faz renovar a confiança entre eles.

A confiança restaurada de forma consciente e responsável supõe que ampliaram seu autoconhecimento e resignificaram suas escolhas, sentimentos e votos. E, especialmente, que fortaleceram a confiança em si mesmos.






quinta-feira, 12 de maio de 2022

Vida interior: estímulo à vida

Por que alguns sentimentos tomam conta de nós, sem motivo aparente? Por que da irritação com as coisas do dia a dia ou com as pessoas próximas? Por que muitos já se levantam amuados, sem estímulo para a vida?

As respostas não são simples e, geralmente, esses sentimentos encobrem problemas bastante profundos e complexos.

Aqui, viso uma abordagem para a tomada de consciência a partir dos sintomas. O que querem dizer sobre nós e para cada um de nós.

Oscilação de humor, agressividade, irritação podem ser expressão de emoções inconscientes. Aprender a analisá-las, discriminá-las pode tirar a pessoa do vazio de si mesma, da melancolia, do embotamento intelectual e até de alguns estados depressivos. Além disso, pode evitar a dependência de um outro(a) no sentido desse outro produzir o estímulo e a alegria de viver, uma vez que a pessoa por si mesma não consegue fazer isso. Não consegue dar sentido para a própria vida.

Nos sonhos é comum que aspectos inconscientes apareçam sob a forma de algum animal. Esse lado, digamos, animal da psique representa nossas reações físicas, instintivas, incluindo as de natureza sexual. Não somente elas. Reações físicas instintivas como a agressão, fantasias sexuais, irritações, fascinações e tudo que tem origem no corpo precisa passar pelo processo de humanização, ou seja, pela integração consciente dessa parte importante da natureza humana.

Os sonhos, certamente, não são o único caminho para se entrar em contato com esse conteúdo. O próprio comportamento, os sintomas em si podem nos levar à consciência de algo que está ali deixando-nos agressivos, irritadiços, sem vitalidade e/ou excessivamente críticos.

O pensamento permite analisar por partes, facilita o domínio de uma reação, de um sentimento para indagá-lo:

- Por que estou tão irritada(o)? Por que me sinto assim? Por que me irrito tanto quando ele(a) faz isso ou aquilo?

Portanto, a melhor maneira de integrar reações, sentimentos é questionar esses estados de espírito, esses estados de animo autonomos. Por exemplo:

- Por que acordei mal-humorada(o) hoje? De onde veio isso? Quando começou? O que isso quer dizer realmente? Assim, pode-se chegar ao que está acontecendo, interiormente.

Tudo que estimula uma pessoa ou a fascina provém desse interior. Mais precisamente, provém da relação positiva com seu interior. Uma relação negativa com ele torna a pessoa seca, embotada intelectualmente, praticamente sem vida.

A relação positiva consigo mesmo(a), facilitada pelo autoconhecimento e pela integração de aspectos da natureza instintiva do ser humano, é o estímulo necessário à vida.


(Texto extraído e adaptado do livro "O gato" de Marie Louise Von Franz)







 


 



 



 


segunda-feira, 14 de março de 2022

A vida evolui e você?

Não há como negar que houve evolução no modo de viver e se comportar da humanidade. Fomos nos adaptando e desenvolvendo recursos cada vez mais sofisticados de sobrevivência e bem estar. Chegamos até aqui, como espécie,  por conta dessa nossa capacidade de adaptação. 

Mas, enquanto indivíduos, como estamos evoluindo? Na prática do dia a dia, onde está a maior dificuldade de adaptação? 

Quais dessas dificuldades podem estar impedindo sua adaptação aos desafios que a vida apresenta:

- Não consegue ficar no presente? Sente-se preso ao passado ou se (pré) ocupa do futuro?

- Dificuldades com imprevistos? Precisa ter tudo sob controle ou planejar muito, antes de agir? 

- Geralmente, arrepende-se de ter lidado com situações da maneira como lidou? Sentiu que suas reações foram desproporcionais, as emoções intensas demais?

- Prefere deixar que o tempo resolva situações ou assume a direção do que quer, do que sente, do que pensa? 

- Preocupa-se excessivamente com o que os outros vão pensar ou estão pensando sobre você? Quer sempre agradá-los?

- Sente-se inadequado, inferior ou

- Julga os outros como inferiores? 

- Sente necessidade de mudar o outro, as situações ao seu redor? Tende a querer que tudo seja do seu jeito?

Enfim, há muitas maneiras que nos impedem de estar bem conosco, com os outros e com a vida.

Não é incomum as pessoas saberem o que no seu modo de agir dificulta suas vidas. Entretanto, não conseguem sair desse lugar ou lidar de maneira difierente com tais situações. Estão sempre ansiosas, estressadas, por acreditarem que estão em falta consigo, com os outros, com a vida. Perdem sono, comem de mais ou de menos, consomem muito, acumulam; enfim, vão aumentando seus problemas ao invés de enfrentá-los, de encontrar soluções para aquilo que as aflige. (Não raro, nesse enfrentamento, deparam-se com soluções mais simples do que imaginaram.) 

O autoconhecimento é a possibilidade de saída desse "caminho da roça" das repetições. Permite o desenvolvimento da autoestima, diminuindo expectativas, geralmente, muito altas em relação a si e aos outros. Traz a pessoa mais para o presente, onde de fato a vida está acontecendo e a ajuda na aceitação de como ela é. Essa aceitação - de si e da vida como são - é condição para que a pessoa evolua como individuo e sujeito da própria vida.

Há muitas  maneiras de adquirir autoconhecimento: leitura, videos especializados, meditação, psicoterapia etc. Em todas, precisa haver não só o desejo de, mas, dedicação, disciplina, paciência consigo, como requer qualquer aprendizagem . A psicoterapia, dentre poucas, é a que oferece oportunidade de se ter alguém, devidamente preparado, para  nos acompanhar nessa jornada: - A maravilhosa jornada de vir a ser quem se é! Vir a ser  dinâmico, como a vida em evolução.





quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Eros e Logos. Feminino e Masculino: princípios que regem mulheres e homens.

Acredita-se que o Patriarcado tenha sua origem na divisão de tarefas já nos tempos primitivos. As tarefas ligadas à maternidade limitavam as mulheres que, além disso, não tinham a mesma capacidade física dos homens para fugirem dos predadores e caçarem suas presas.

Patriarcado... A regra do Pai... Poder exercido por homens adultos justificado, desde então, pelas diferenças entre a natureza feminina e masculina, em circunstâncias de vida que mudaram muito ao longo do tempo. 

Nascemos nessa estrutura entendendo como "assim que é"; portanto, atribuindo ao homem maior poder e à mulher um status de menor importância na estrutura social. Com as mudanças que promovemos como sociedade (com a importante participação da mulher) chegamos aos conceitos de Feminino e Masculino bastante contaminados pelos muitos modos de aculturação das sociedades - tanto ocidentais, como orientais.

O princípio Masculino associado ao Logos, às regras, aos limites, ao objetivo, ao assertivo, à força de ação e realização etc., desenvolve-se naturalmente nos homens e, de per si, é valorizado.
O princípio Feminino - tanto nas mulheres, como nos homens - é constituído dentro do sistema patriarcal. Em decorrência disso é subestimado em suas características, por todos. 
Gerar e nutrir a vida, basicamente, constitui a importante função do Feminino. Enquanto princípio, ele nutri não só a vida, como também, está presente no autocuidado, no cuidado com e do outro, da vida emocional e psicológica. Está presente até no cuidado das tarefas do dia a dia - que requerem paciência e entrega.
Entregar-se, expor fragilidades, vulnerabilidades são características desse princípio cada vez mais reprimidas e desvalorizadas- principalmente, pelos homens; mas, também, pelas mulheres.

A desvalorização e a supressão de muitos aspectos do princípio Feminino trouxeram para os generos dificuldades, transtornos quase como um convite para redenção desse feminino.

Fomos constituídos como indivíduos, dentro de um patriarcado estrutural. As atuais circunstâncias de vida são outras e exigem da mulher atividades, atitudes e desempenho que favorecem muito sua identificação com aspectos do princípio masculino. As "filhas do Pai" estão cada vez mais parecidas com o que traduz o comportamento masculino.

Identificar-se com o Masculino é diferente de se deixar guiar por ele. À mulher cabem tarefas que lhe ajudem a compreender a melhor maneira de lidar com a contraparte masculina da sua psique. Discernir, separar, ter foco, encontrar o modo mais eficiente de usar sua agressividade, distanciar-se para obter do todo a parte que, de fato, fará diferença na resolução dos problemas - são algumas dessas tarefas.

Como estamos mergulhados nesse mundo regido pelo Masculino, e tendo parte da nossa psique por ele constituída enfrentaremos dificuldades, sem dúvida, para fortalecer o feminino natural em nós. Entretanto, ainda me parecem desafios "menores" do que aqueles que as mulheres muito identificadas com o masculino terão. Especialmente, do que aqueles que os homens enfrentarão caso queiram sair da unilateralidade que os atrofia, e limita sua capacidade na relação consigo e com os outros.

A mulher será forte, equilibrada se tiver sua contraparte masculina ( Animus), suficientemente desenvolvida, madura, capaz de orientá-la  na execução das funções que necessita para viver plena, realizada e saudável.

O homem igualmente saudável, equilibrado será aquele que conta com sua contraparte feminina  (Anima), para orientá-lo. Deixar o egocentrismo que o ser homem lhe rendeu até aqui, para estar na vida inteiro - pode vir a ser a grande tarefa dos homens. Seus esforços, deste ponto de vista, serão grandiosos. Afinal, aparentemente, não há motivos para que sejam feitos: são homens num mundo regido por eles e para eles. O convite para essa jornada será feito, certamente, pela sua Anima, através do sentimento de infelicidade, vazio que os abaterá em algum momento - apesar dos pesares. Afinal, as circunstâncias de vida atuais não podem deixar de ser consideradas.
Diante desse cenário, temos unilateralidade em ambos. Encontraremos aspectos do Feminino tanto na sombra de homens como na de mulheres e em quaisquer formas de identificação com o Masculino e com o Feminino.

As tarefas são muitas e requerem determinação, disciplina e disponibilidade. Tornar-se consciente de si e do que está à volta requer vontade e abertura para aprender e para se reeducar. As mudanças podem ser facilitadas se considerarmos que todos precisamos delas, em maior ou menor grau.