sábado, 18 de dezembro de 2021

Como nos contos de fadas...

Muitas vezes encontramos nos processos psicoterapêuticos temas semelhantes às maldições, aos feitiços dos contos de fadas. Como é frequente neles, alguém é condenado a assumir uma forma animal ou a ser horrível, repulsivo. Há casos, também, em que alguém é forçado a cometer maldades e a ser destrutivo – sem que deseje agir dessa maneira. 

Ódio, raiva, inveja, vingança são sentimentos que mais facilmente encontramos nesses “estados de maldição”.

A raiva já é um sentimento difícil de ser aceito, de ser administrado. Podemos imaginar a dificuldade que é sentir ira, ódio. Contê-los. Controlá-los. 

Apesar do reconhecimento das mágoas, de que a pessoa foi ferida, a raiva, o ódio são, frequentemente, negados e, por isso mesmo, manifestados de maneira muito mais destrutiva.

Os vícios, as compulsões, muitas doenças psicossomáticas, o excessivo sentimento de culpa; enfim, a falta de cuidado para consigo, a depressão, a ideação suicida podem ser sinais de que a raiva está sendo engolida. Sinais de que a raiva está sendo autodirigida. Quando não, transferida, para que outros a expressem pela pessoa.

Onde há maldição – há redenção!

A ira pode ser uma força essencial para redimir complexos e transformar a essência ferida. Se a pessoa puder aprender a se relacionar com a própria raiva poderá ter revelados aspectos dessa essência.

Na falta de modelo de enfrentamento dessa força é necessário trazê-la à tona, apesar do medo  dessa energia tão intensa.

Fogo se controla com fogo! Por exemplo, muitas vezes, ateia-se fogo, para deter o fogo destrutivo de incêndios em florestas. Assim, a ira pode gerar ações de assertividade que estipulam limites.

No conto de fadas dos Irmãos Grimm “O rei sapo”, a princesa encontra sua própria força e o vigor de sua natureza, antes dados aos outros, ao encarar sua ira. 

Mesmo sentindo repugnância pelo sapo, obedece a seu pai no cumprimento da promessa feita. O sapo trouxe a bola de ouro, que ela havia deixado cair no fundo de um poço e ela teria que cuidar, alimentar e o colocá-lo em sua própria cama. A princesa não consegue cumprir essa última parte, deixando-o no chão. O sapo exige que cumpra sua promessa na íntegra. Nesse momento, ela se enfurece e o atira com toda força na parede. No mesmo instante, ele se transforma em príncipe – sua verdadeira natureza, antes de ter sido vítima de um feitiço. A raiva foi a resposta apropriada: libertou o príncipe de sua forma pervertida de sapo.

Em “O rei sapo” a transformação se dá porque a princesa, finalmente, assume a responsabilidade por seus sentimentos femininos e os defende. A ira pode ser o início da conscientização.

Não há dúvida, portanto, de que para transformar ira em energia criativa é preciso que as pessoas tenham acesso a ela. 

É comum que a ira tenha raízes na sensação de abandono, de traição, de rejeição e de violência física e sexual. Situações, muitas vezes, vivenciadas nas primeiras relações da vida de uma pessoa.

Também, não é surpresa que ela reapareça nos relacionamentos atuais e que venha misturada a sentimentos de inveja e vingança - suficientemente fortes -  para matar qualquer relação e, também, para destruir a capacidade de amor-próprio dessas mesmas pessoas.

A tendência suicida de Psique mostra como ela está possuída por essa agressividade mortífera. No mito Eros e Psique ficamos sabendo que ela perdeu a relação com seu amante Eros. Para recuperá-lo precisa realizar as tarefas que são dadas pela invejosa mãe dele, Afrodite. 

Psique se desespera porque as tarefas lhe parecem impossíveis. Não acredita que possa realizar a primeira delas: separar cada tipo de grão daquela imensa montanha deles, até o dia seguinte. Deita-se e dorme. Na manhã seguinte encontra os grãos separados e agrupados. E fica surpresa com o resultado.

Contou, para realizar essa primeira tarefa, com a ajuda de formigas, ou seja, com aspectos dela mesma como: disciplina, determinação e trabalho.

Durante o processo psicoterapêutico esses aspectos podem ser desenvolvidos e/ou fortalecidos para que a pessoa comece a separar o que é próprio, do que é do outro; as próprias expectativas, das expectativas dos outros; quanto da ira realmente pertence a si, quanto é uma ira não-resolvida pelo pai ou pela mãe, ou mesmo pela cultura.


Na segunda tarefa, ela tem que enfrentar carneiros selvagens, cuja fúria é desatinada e assassina, para tirar fios de sua lã dourada. Não vê como fazer isso. Vai até um rio para cometer suicídio. Lá ouve uma voz que lhe diz como cumprir a tarefa:

"Ao cair do sol os carneiros adormecem à beira do rio e deixam nos galhos dos arvoredos, pelos quais passaram, os fios de que precisa. Esgueire-se como junco, pela margem e vá até os arvoredos. Sacuda suas folhas, para que consiga os fios de lã pedidos por Afrodite."

Nessa tarefa foi vital para Psique aprender a ouvir sua voz interior. Com paciência e sabedoria, pode reconhecer o momento certo de agir, de entrar em contato com essa energia, sem ser destruída por ela. 

 

A terceira tarefa, também, parece ser impossível a Psique. Diante da dificuldade a ser enfrentada, ouve vozes sugerindo que desista do que não pode fazer! Você não vai conseguir!  

No alto de uma montanha está a nascente das águas que correm para o rio do mundo inferior. É dessa nascente que Afrodite quer que Psique traga água limpa em um vaso de cristal. Zeus lhe envia uma águia, que pega o vaso de cristal e voa com ele até o alto da montanha, enchendo-o com habilidade. Psique recebe o vaso com a água e o entrega a Afrodite.

Ganhar distância dos problemas para deles tirar só o necessário foi a habilidade que Psique desenvolveu, através dessa tarefa

Foi (e É) necessário unir consciente e inconsciente para conter a energia da ira e lhe dar forma, ou seja, para não  deixar que se dissipe numa ira amorfa.

 A aceitação e a transformação da ira podem liberar e revelar a força e o espírito das pessoas "enfeitiçadas", redimindo-as para viverem a qualidade das pessoas que são, em suas essências genuínas. 

  




Trechos do livro "A mulher ferida" de Linda S. Leonard. - Ed Saraiva  - foram adaptados por mim na composição do texto acima.