quinta-feira, 5 de setembro de 2013

PUELLA - A ETERNA MENINA


Texto adaptado por Maria Idalina O. de A. Germann


“Os pais da Bela Adormecida e da Cinderela por conta de suas atitudes frente ao feminino, levaram suas filhas a sofrer e a serem relegadas a posições subalternas e inativas. Bela Adormecida e Cinderela foram, afinal, salvas por príncipes da mesma forma que muitas mulheres que têm uma vida passiva (esse papel passivo é um dos caminhos para as mulheres que vivem o padrão da “eterna menina”) buscam segurança e proteção no casamento, apesar do sentimento de traição a si mesmas que a maioria delas vivencia.

Nossa cultura colaborou para essa traição.Durante muito tempo, as mulheres foram elogiadas pela anuência, adaptabilidade, delicadeza, jovial doçura, cooperação obediente com os maridos, que são a “forma de sua matéria”. As mulheres que tem suas vidas pautadas por esse padrão arquetípico de existência permaneceram simplesmente fixadas num nível infantil de desenvolvimento. Como Peter Pan preferem não amadurecer e são para sempre meninas. As vantagens dessa opção são compreensíveis. Pode ser confortável e excitante ser admirada como uma coisinha jovem e doce, depender de uma pessoa mais forte para tomar decisões importantes, deleitar-se com fantasias românticas sobre o Príncipe Encantado que consegue atravessar o espinheiro em torno da Bela Adormecida para salvá-la, flertar com as possibilidades, tornar-se a imagem de camelão do delírio de muitos homens e, até mesmo, esquivar-se diante da vida e passar os dias num mundo particular de faz-de-conta. Contudo, são inúmeras as desvantagens desse estilo de vida feminino! Em troca desses benefícios, a eterna menina muitas vezes abre mão de sua independência e acata uma vida passiva e dependente. Em vez de desenvolver-se nos planos pessoal e profissional, de elaborar sua própria identidade, de descobrir quem realmente é, através da difícil tarefa de autotransformação, a eterna menina em geral adquire sua identidade a partir das projeções feitas pelos outros sobre ela, entre as quais: a mulher fatal, a boa filha, a esposa, a anfitriã encantadora e, até mesmo, a heroína trágica. Em lugar de assumir a força e o poder do potencial que lhe é inerente e as responsabilidades que o acompanham, a eterna menina permanece frágil. Como uma boneca, permite aos outros fazerem de sua vida o que bem quiserem.

Daqui para frente, serão dados exemplos das variadas maneiras pelas quais esse tipo de existência pode ser manifestar. Não constituem “tipos” ou “categorias, nas quais, as mulheres possam ser encaixar com perfeição. Aliás, qualquer mulher pode viver vários desses estilos de vida em momentos e situações diferentes.


  1   A bonequinha engraçadinha


 Um estilo infantil freqüente é ter uma existência de “queridinha”.  Essa mulher se torna a imagem que seu homem espera dela, adaptando-se a suas fantasias sobre o feminino. Exteriormente, pode ate parecer segura e bem sucedida e, como uma princesa poderosa, ser alvo de inveja dos desejos secretos de muitas outras mulheres, porém, no íntimo, sua identidade é frágil e insegura, pois, na medida em que constantemente posa para os outros, não sabe de fato como é.
Quantas mulheres levaram quase a vida toda como esposas desse modo, sendo as companheiras e anfitriãs encantadoras para seus maridos, apenas para deparar com um divórcio, na meia idade, destituídas de força pessoal e crescimento?
Na peça de Ibsen, Casa de bonecas, esse padrão é claramente retratado. Nora, a personagem principal, é tratada pelo marido como sua boneca, seu brinquedinho, sua “tímida queridinha”, sua “esquilinha”, sua “cotovia”, sua “pequena gastadeira”, sua “passarinha cantora”, sua “cabecinha de vento” e, assim por diante; ela a chama por todos os apelidos usados para animais de estimação. Do ponto de vista de seu marido, Nora deve ser protegida, pois é incapaz de ser pratica, de lidar com dinheiro, de tomar decisões, de ser responsável. Ele lhe diz, por exemplo:
“Apenas apóia-te em mim: vou aconselhar-te e orientar-te. Eu não seria um homem de verdade se esse desamparo feminino não te tornasse duplamente atraente a meus olhos... Serei tanto a tua vontade como tua consciência”.

O que seu marido não sabe é que Nora já tinha cuidado dele pedindo emprestado algum dinheiro, quando ele adoecera, para cobrir os gastos de uma viagem essencial à recuperação de sua saúde. Sabendo que Torvald, com sua “independência masculina”, seria orgulhoso demais para se humilhar e aceitar dela a quantia, Nora manteve esse gesto em segredo. A crise e o confronto para Nora surgem quando o agiota ameaça denunciar sua trama. No inicio, tenta fazer tudo para impedir que o marido saiba a verdade e se vale de todo o encanto de que é capaz como “esquilinha”. Aos poucos, vai percebendo que ao proceder dessa forma está, de fato, escondendo-se dele, ocultando não só seu erro como sua competência e força. Quanto mais clara fica essa percepção, mais ela se decide a deixar que tudo venha à tona. Quando seu marido descobre a verdade e sua imagem publica esta sendo questionada, ele fica furioso e tem a confirmação de que ela é uma irresponsável. Furioso ele declara:
“Compreendes o que fizeste?...Toda falta de princípios de teu pai veio para ti. Nenhuma religião, nenhuma moralidade, nenhum senso do dever...”
Ao ouvir tais palavras, Nora entende que não pode mais continuar fingindo um papel e que deve se defender e enfrentá-lo. Quando o agiota retira a ameaça de denuncia e o marido a perdoa, pois agora a situação não representa mais nada de serio para ele, ela tem a oportunidade de derrubar de vez seu papel de boneca. Porém, dá-se conta de que a mudança de atitude só aconteceu por força de circunstâncias externas, pois continua vendo-a como uma criança. Sendo assim, ela o enfrenta dizendo que, pela primeira vez em oito anos de casamento, teriam uma conversa séria. Seu texto é o seguinte:
“Fui profundamente enganada, Torvald, primeiro por meu pai e depois por ti. Tu nunca me amaste. Só pensaste que era agradável me amar. Quando morava com meu pai, ele me punha a par de suas opiniões a respeito de tudo e, por isso, eu tinha as mesmas opiniões que ele. E, quando eu discordava dele, escondia o que achava porque isso o teria desagradado. Ele me chamava de bonequinha e brincava comigo da mesma forma que eu brincava com as minhas bonecas. Quando vim morar contido foi apenas uma transferência das mãos de meu pai para as tuas. Tu sempre dispuseste tudo de acordo com as tuas preferências e, por isso, fiquei tendo os mesmos gostos que tu, ou melhor, fingi que sim. Não tenho muita certeza do que realmente é”.
Para Nora, essa percepção vem acompanhada da constatação de que ela não sabe ao certo quem é, porque sempre dependente de algum homem. Entende que deve ficar sozinha para se conhecer e compreender e que precisa aprender a formar seu próprio conjunto de valores e opiniões, em vez de aceitar as opiniões alheias, coletivas. Na peça, sua decisão final é deixar o marido e os filhos e lutar sozinha para se encontrar. Embora essa possa parecer uma solução radical (principalmente porque Ibsen escreveu a peça em 1879), mesmo agora as mulheres sentem muitas vezes a necessidade de deixar a família e partir em busca de si mesmas. Compreender o significado desse ato como a percepção de que não é suficiente existir em função dos desejos e projeções dos maridos e que é necessário descobrir quem se é a partir de si mesma – é o mais importante.
 Pode muito bem ser que o pai, o marido e os homens em geral tenham, em suas projeções, contribuído para essa visão inadequada do feminino, mas a reação a essas projeções com atos de culpabilização apenas perpetua as projeções de passividade e dependência. Existe uma sombra a ser enfrentada, pois por trás da esposa cordata, existe uma mulher forte que secretamente manipula o marido, como faz Nora. A tarefa é começara a articular os próprios valores e opiniões e a aceitar conscientemente a própria força, usando-a de forma criativa e às claras.


2- A MENINA DE VIDRO

Outra forma de existência infantil é ser tímida e frágil, alheia à vida, em geral, habitando num mundo de fantasia. Há muitas mulheres que passam a vida na esfera da fantasia, talvez, animadas pela presença de um “amante imaginário” ou pela força de um sonho místico, incapazes de entrar no mundo real e de se relacionar com homens, prisioneiras da montanha de vidro de sua própria fantasia.
Em contraste com o padrão anterior, no qual o pai se projetara demais sobre a filha e, para quem a tarefa era libertar-se dessas projeções paternas e maritais, este padrão implica um pai ausente. Nesses casos, não há relação com o masculino, não há nenhuma influencia ativa e consciente com o pai, nenhum relacionamento com o mundo exterior. A mãe pode até fazer isso a seu próprio modo, mas, muitas vezes, ela mesma está vivendo na fantasia e não entende, de fato, a filha. Desprovida de projeções masculinas e de uma relação com o masculino, a “menina de vidro” cria seu próprio mundo, uma vida de fantasia que compensa seu isolamento em relação ao mundo exterior.
Muitas mulheres dão vida a esse padrão, mas é comum não nos inteirarmos dele porque tais pessoas se escondem. Quando, porem, seu universo de fantasia vem à luz, por um confronto com a realidade, é freqüente que apareçam na terapia.
Uma forma de se ocultar do mundo prático e extrovertido é retirar-se para o universo dos livros, em particular os de poesia e literatura fantástica.
Uma mulher que tinha crescido na pobreza, com um pai ausente e, cada centavo que conseguia ia para a sua coleção de animais de vidro e para os livros. Quando criança, sua historia predileta era a de uma órfã que tinha ido morar nos Alpes com seu avo cético e retirado. A protagonista era uma criança sociável e seu calor humano e espontaneidade incutiram vida e amor no avo e numa garotinha doente, presa ao leito. Ela era uma parte da personalidade dessa mulher, um lado que tinha sido menosprezado durante sua infância, mas que, finalmente, emergira a partir do momento em que sua autoconfiança aumentara. Por fim, ousou escrever para si mesma e, por esse meio, acabou sendo conhecida na esfera pública. Depois teve de enfrentar o circuito das palestras e passou por muitas fantasias de ansiedade do tipo “menina de vidro”, nas quais desmaiava na frente da platéia. Toda vez que fazia isso era um trauma, mas ela corria o risco e, dessa forma, pode trazer seu mundo interior a uma vinculação com o exterior, partilhando então sua visão particular da vida com outras pessoas.

3- A DESPREOCUPADA:  DON JUAN DE SAIA

A mulher despreocupada é outro padrão infantil. Essa menina vive de impulsos, tão despreocupada quanto o vento, exuberante. Parece ser espontânea e solta, levando uma vida louca excitante, ao sabor do momento, desfrutando o que estiver acontecendo.
A dificuldade para esse tipo de puella é que tenta viver por completo no domínio das possibilidades, ignorando as limitações e as realidades dos outros e de si mesma. O que ela precisa fazer, porém, é aceitar os limites e comprometer-se consigo mesma e com algo fora de si. Aceitar o paradoxo da finitude e da possibilidade é o caminho de sua resolução. Criar, através das varias formas artísticas, é uma alternativa para atingir essa finalidade. Por exemplo, Anaïs Nin transformou a existência de puella que havia em seu interior escrevendo, dando forma a suas intuições, integrando, assim, possibilidade e realidade.
Buscou psicoterapia uma mulher que estava apaixonada por um homem que também a amava, no entanto, ele lhe havia dito que, enquanto ela não “se acalmasse” e formasse uma noção de seu valor como pessoa, ele não poderia considerá-la uma verdadeira parceira. Sua finalidade era definir-se em vez de dispersar-se nos relacionamentos, como costuma lhe acontecer. Seu padrão era ir de homem em homem, e ela sentia que seu valor vinha do numero de amantes com quem dormia e também de suas diferentes nacionalidades. Era muito espontânea e freqüentemente ia para cama com quem mal acabara de conhecer na rua. Quando lhe pedia que anotasse seus sonhos e os trouxesse à consulta, esquecia de fazê-lo ou os anotava em antigas contas já pagas, em papel higiênico, em qualquer coisa que estivesse à mão no momento. No plano de seu desenvolvimento, sua mãe a queria “virgem” e seu pai não estivera emocionalmente próximo. Primeiro, tornou-se a queridinha da mamãe, a “boa menina”; depois, revoltou-se e encarnou o lado desconhecido dela. Em certo momento, teve um sonho no qual era um cachorrinho poodle frances, o animal predileto de sua mãe, e esta lhe oferecia algo especial para comer, recheado de veneno. Primeiro ela engole, depois vomita. Foi assim que se passou com ela em nível psicológico. Ela queria ter sido o animalzinho de estimação de sua mãe, mas vomitou o petisco “virgem”. Disso resultou sua virada de mesa completa e sua atitude de dormir com todos que pudesse. Seu pai não estava próximo o suficiente para lhe transmitir uma noção de seu próprio valor feminino. A tarefa que cabia a essa mulher consistia em aceitar que estava se revoltando contra a mãe através dessa vida de borboleta despreocupada, mas que isso, por outro lado, a impedia de relacionar-se com o homem a quem amava.

4. A DESAJUSTADA

Outro modelo de puella é a mulher que, em virtude de vergonha por causa de seu pai, é rejeitada pela sociedade e/ou se revolta contra ela. Essa mulher pode estar identificada com seu pai e permanecer ligada a ele de modo positivo; assim, quando a sociedade o rejeita, ela rejeita a sociedade.
Na família dessas mulheres é comum a mãe viver um papel critico, tornando-se a voz da consciência do “mau pai”.  Se a filha manifesta algum tipo de comportamento semelhante ao do pai, a mãe irá castigá-la, ameaçando-a com as mesmas fatalidades que se abateram sobre o destino do pai. A menos que a filha siga o “bom conselho” da mãe, ela deverá revoltar-se e reeditar o padrão paterno, repetindo seu lado autodestrutivo.
Dostoiévski descreveu esse padrão em muitas de suas personagens femininas cujos pais eram viciados de algum tipo. Parece-me que essas puellas em geral têm um “homem subterrâneo” na linha de Dostoiévski vivendo em seu íntimo, que se recusa com cinismo a assumir a possibilidade de ajudar e de mudar tanto a si quanto a sociedade que o rejeitou.
É provável que essas mulheres desperdicem suas vidas numa passividade inerte, entrando talvez no caminho do álcool ou do vício das drogas, da prostituição, alimentando fantasias suicidas ou talvez entrando em relacionamentos amorosos doentios. É possível ainda que se casem com homens semelhantes ao pai e que se desgastem com depressões e masoquismo diante de uma vida e de um relacionamento desprovidos de realização. De algum modo, como Perséfone, essas mulheres foram levadas ao escuro mundo subterrâneo de Plutão e lá permanecem com pouca ou nenhuma força de ego e desenvolvimento de animus que as possa ajudar.

Arthur Miller descreveu esse tipo de existência de puella em sua peça "Depois da queda", ao compor a personagem Maggie, em parte com base em sua ex-esposa, Marilyn Monroe.

O paradoxo, na raiz desse padrão puella, é que apesar de toda a real humilhação, vergonha e rejeição de sua historia passada, de que resulta sua autoidentificação com a vítima e com a desvalorização, o caminho da redenção está na luta contra essa identificação, ao invés de viver compulsivamente a vergonha e a repetição do padrão de rejeição. A tarefa é transformar a atitude de esperança, passando a afirmar conscientemente a si e a vida.

Um exemplo dessa atitude transformadora está no filme de Fellini "Noites de Cabíria."

Certa paciente teve um sonho, no qual, a figura do avo lhe dizia que sua terapeuta a havia diagnosticado como “aberração social”. Um de seus problemas era poder aceitar-se e desistir do papel de menininha boazinha que havia desempenhado na infância, principalmente tendo sido a queridinha de sua mãe. Estava implicado nessa questão o fato de que precisava confiar na capacidade de ser quem precisasse ser, independentemente dos julgamentos morais que sua terapeuta pudesse fazer. Precisava desidentificar-se da imagem negativa que tinha a seu próprio respeito, oriunda do comportamento de seu pai e do julgamento moral de sua mãe.

5. O DESESPERO DA PUELLA

A maioria das mulheres é bem capaz de reconher em si algumas das características dessas modalidades de existência pueril, podendo ocorrer que um desses padrões predomine em relação aos demais. Além disso, alguns dos padrões diferentes têm traços em comum. Por exemplo, o aspecto de rebeldia é muitas vezes uma parte da mulher despreocupada. A ênfase muito excessiva na conquista da atenção e da admiração dos homens pode aparecer tanto na bonequinha queridinha como na despreocupada e na desajustada. A ênfase na imaginação marca a puella tímida e frágil, assim como a despreocupada, embora esta concretize no mundo os vôos de sua imaginação, ao passo que a menina de vidro afasta-se do mundo para dentro de sua imaginação.
Um elemento comum a todos esses padrões pueris é o apego ou a uma inocência ou a uma culpa absolutizada que são os dois lados de uma mesma moeda, capaz de alimentar a dependência de outrem que reforce ou condene seus atos. Existe em todos a relutância em responsabilizar-se pela própria existência, a ausência de tomadas de decisões e de discriminações; é o outro que se incumbe disso. O relacionamento com os limites e as fronteiras também é precário: ou há a recusa em aceitá-los (a despreocupada e a desajustada), ou há a “ilimitada” aceitação (por exemplo, no caso da tímida reclusa e da bonequinha queridinha).
A puella conduz sua vida no âmbito das possibilidades e evita a realidade dos compromissos.  Permanecer no possível conduz a uma de duas direções principais: para os desejos e os anseios ou para a fantasia melancólica. A bonequinha queridinha e a despreocupada se inclinam na primeira direção, enquanto a menininha de vidro e a desajustada vão na segunda. Em todos os casos, porem, resulta a incapacidade de agir. Para que a ação seja verdadeira, é preciso a síntese e a integração tanto da possibilidade como da necessidade e é essa síntese, segundo Kierkegaard, que traduz um dos aspectos fundamentais da pessoalidade.

A questão central para a puella é afirmar-se como a pessoa que realmente é, já que sua tendência é conquistar sua identidade (ou falta de identidade) junto aos outros. Para entrar em contato com o mistério de sua alma, isto é, para “ser misteriosa” é necessário que discrimine, com objetividade, entre suas potencialidades e verdadeiras limitações, tornando, então, concreta a síntese resultante dessa percepção. A puella precisa aceitar seu potencial de força e desenvolve-lo a fim de efetuar a concretização do mesmo; precisa ,ainda,comprometer-se com seu ser misterioso e singular.
A base do problema pueril está no que Kierkegaard chama de “O desespero-fraqueza: o desespero de não desejar ser si mesma”. A adaptação de ego da puella foi, precisamente, ser fraca: ser passiva e desempenhar o papel desejado para ela pelos outros. Assim que se torna consciente de seu padrão, a puella percebe que está encarcerada, que foi barrada precocemente em seu desenvolvimento. Também, percebe que tem algo com que contribuir para o mundo, embora ainda não haja encontrado uma forma de fazê-lo. E como isso é frustrante: saber que se tem algo a contribuir e não ser capaz de fazê-lo! Esse é o desespero-fraqueza que pode levar a um recuso para dentro de si mesma, à adaptação ou à revolta. Mas pode, também, propiciar a transformação.

RUMO À TRANSFORMAÇÃO
O primeiro passo no caminho da transformação desse padrão é tomar consciência de que se está fora de contato com o Self, isto é, com as dimensões mais profundas existentes no seu íntimo. Com um poder maior do que a força dos impulsos do ego. Denominar o padrão dá à puella a perspectiva, a distancia de que necessita e o entendimento das razões pelas quais permaneceu fixada em seu desenvolvimento.

Denominar é um processo ativo.

Essa conscientização vem acompanhada de sofrimento e do segundo e necessário passo: o de aceitar esse sofrimento. Parte do problema da puella é sentir a própria fraqueza e dependência, é se ver como vítima. Identificada como vítima, recusa a responsabilidade e age como mocinha inocente. Por isso, a verdadeira compreensão da fraqueza e a aceitação do sofrimento envolvem o confronto com a sombra, com aquela parte da pessoa que é negada. A sombra da puella está vinculada ao poder, que ela não aceitou de fato, com responsabilidade. Muitas vezes, esse poder é assumido por uma figura na psique, um velho pervertido,figura mesquinha e de má índole que precisa, também, ser enfrentada. Parte da aceitação do sofrimento implica um combate com essa figura. Faz parte da aceitação do sofrimento perceber que esteve nas mãos desse velho perverso.
Por fim, o último passo: a percepção de que, apesar de nossa fraqueza, temos em nosso interior uma força, um acesso a esse poder superior aos impulsos do ego. Ou seja, o passo final é aceitar a força do Self e essa aceitação implica conscientização e escolha, escolha essa que não deve ser confundida com a força de vontade do ego. Trata-se da escolha que acontece nos fundamentos mesmos de nosso ser, em favor de aceitar o poder do Self. Para Kierkegaard, esse é em última instancia um ato de fé a exigir toda a força da receptividade.

A questão final é aceitar a força que existe no interior da própria pessoa e apoderar-se dela, em vez de desistir e seguir os padrões pueris habituais de fuga, afastamento, adaptação ou rebelião.

Onde é que a puella encontra pela primeira vez a revelação de que há uma força em seu interior? Tal revelação pode vir-lhe numa variedade de modos. As oportunidades estão por toda parte. Portanto, o segredo é estar atenta e aberta a elas.

Em ultima análise o que se exige de uma puella em seu processo de autotransformação é que renuncie a seu apego à dependência, à inocência e à impotência infantis e que aceite a força que já está ali: que realmente se valorize. Se ela aceitar sua força e poder, sua inocência de menina irá se manifestar como elã jovial e feminino, como vigor, como espontaneidade e abertura a novas experiências que possibilitem um relacionamento criativo e produtivo.”





Bibliografia:
“A mulher ferida” – em busca de um relacionamento responsável entre homens e mulheres.

Leonard, Linda Schierse