Texto adaptado por Maria
Idalina O. de A. Germann
“Os pais da Bela Adormecida e da
Cinderela por conta de suas atitudes frente ao feminino, levaram suas filhas a
sofrer e a serem relegadas a posições subalternas e inativas. Bela Adormecida e
Cinderela foram, afinal, salvas por príncipes da mesma forma que muitas
mulheres que têm uma vida passiva (esse papel passivo é um dos caminhos para as
mulheres que vivem o padrão da “eterna menina”) buscam segurança e proteção no
casamento, apesar do sentimento de traição a si mesmas que a maioria delas
vivencia.
Nossa
cultura colaborou para essa traição.Durante muito tempo, as mulheres foram
elogiadas pela anuência, adaptabilidade, delicadeza, jovial doçura, cooperação
obediente com os maridos, que são a “forma de sua matéria”. As mulheres que tem
suas vidas pautadas por esse padrão arquetípico de existência permaneceram
simplesmente fixadas num nível infantil de desenvolvimento. Como Peter Pan
preferem não amadurecer e são para sempre meninas. As vantagens dessa opção são
compreensíveis. Pode ser confortável e excitante ser admirada como uma coisinha
jovem e doce, depender de uma pessoa mais forte para tomar decisões
importantes, deleitar-se com fantasias românticas sobre o Príncipe Encantado
que consegue atravessar o espinheiro em torno da Bela Adormecida para salvá-la,
flertar com as possibilidades, tornar-se a imagem de camelão do delírio de
muitos homens e, até mesmo, esquivar-se diante da vida e passar os dias num
mundo particular de faz-de-conta. Contudo, são inúmeras as desvantagens desse
estilo de vida feminino! Em troca desses benefícios, a eterna menina muitas
vezes abre mão de sua independência e acata uma vida passiva e dependente. Em
vez de desenvolver-se nos planos pessoal e profissional, de elaborar sua
própria identidade, de descobrir quem realmente é, através da difícil tarefa de
autotransformação, a eterna menina em geral adquire sua identidade a partir das
projeções feitas pelos outros sobre ela, entre as quais: a mulher fatal, a boa
filha, a esposa, a anfitriã encantadora e, até mesmo, a heroína trágica. Em
lugar de assumir a força e o poder do potencial que lhe é inerente e as
responsabilidades que o acompanham, a eterna menina permanece frágil. Como uma
boneca, permite aos outros fazerem de sua vida o que bem quiserem.
Daqui para
frente, serão dados exemplos das variadas maneiras pelas quais esse tipo de
existência pode ser manifestar. Não constituem “tipos” ou “categorias, nas quais,
as mulheres possam ser encaixar com perfeição. Aliás, qualquer mulher pode
viver vários desses estilos de vida em momentos e situações diferentes.
1 A bonequinha engraçadinha
Um estilo infantil freqüente é ter uma
existência de “queridinha”. Essa mulher
se torna a imagem que seu homem espera dela, adaptando-se a suas fantasias
sobre o feminino. Exteriormente, pode ate parecer segura e bem sucedida e, como
uma princesa poderosa, ser alvo de inveja dos desejos secretos de muitas outras
mulheres, porém, no íntimo, sua identidade é frágil e insegura, pois, na medida
em que constantemente posa para os outros, não sabe de fato como é.
Quantas mulheres levaram quase a vida
toda como esposas desse modo, sendo as companheiras e anfitriãs encantadoras
para seus maridos, apenas para deparar com um divórcio, na meia idade,
destituídas de força pessoal e crescimento?
Na peça de
Ibsen, Casa de bonecas, esse padrão é claramente retratado. Nora, a personagem
principal, é tratada pelo marido como sua boneca, seu brinquedinho, sua “tímida
queridinha”, sua “esquilinha”, sua “cotovia”, sua “pequena gastadeira”, sua
“passarinha cantora”, sua “cabecinha de vento” e, assim por diante; ela a chama
por todos os apelidos usados para animais de estimação. Do ponto de vista de seu
marido, Nora deve ser protegida, pois é incapaz de ser pratica, de lidar com
dinheiro, de tomar decisões, de ser responsável. Ele lhe diz, por exemplo:
“Apenas apóia-te em mim: vou aconselhar-te e
orientar-te. Eu não seria um homem de verdade se esse desamparo feminino não te
tornasse duplamente atraente a meus olhos... Serei tanto a tua vontade como tua
consciência”.
O que seu
marido não sabe é que Nora já tinha cuidado dele pedindo emprestado algum
dinheiro, quando ele adoecera, para cobrir os gastos de uma viagem essencial à
recuperação de sua saúde. Sabendo que Torvald, com sua “independência
masculina”, seria orgulhoso demais para se humilhar e aceitar dela a quantia,
Nora manteve esse gesto em segredo. A crise e o confronto para Nora surgem
quando o agiota ameaça denunciar sua trama. No inicio, tenta fazer tudo para
impedir que o marido saiba a verdade e se vale de todo o encanto de que é capaz
como “esquilinha”. Aos poucos, vai percebendo que ao proceder dessa forma está,
de fato, escondendo-se dele, ocultando não só seu erro como sua competência e
força. Quanto mais clara fica essa percepção, mais ela se decide a deixar que
tudo venha à tona. Quando seu marido descobre a verdade e sua imagem publica
esta sendo questionada, ele fica furioso e tem a confirmação de que ela é uma
irresponsável. Furioso ele declara:
“Compreendes o que fizeste?...Toda falta de princípios
de teu pai veio para ti. Nenhuma religião, nenhuma moralidade, nenhum senso do
dever...”
Ao ouvir
tais palavras, Nora entende que não pode mais continuar fingindo um papel e que
deve se defender e enfrentá-lo. Quando o agiota retira a ameaça de denuncia e o
marido a perdoa, pois agora a situação não representa mais nada de serio para
ele, ela tem a oportunidade de derrubar de vez seu papel de boneca. Porém,
dá-se conta de que a mudança de atitude só aconteceu por força de
circunstâncias externas, pois continua vendo-a como uma criança. Sendo assim,
ela o enfrenta dizendo que, pela primeira vez em oito anos de casamento, teriam
uma conversa séria. Seu texto é o seguinte:
“Fui profundamente enganada, Torvald, primeiro por meu
pai e depois por ti. Tu nunca me amaste. Só pensaste que era agradável me amar.
Quando morava com meu pai, ele me punha a par de suas opiniões a respeito de
tudo e, por isso, eu tinha as mesmas opiniões que ele. E, quando eu discordava
dele, escondia o que achava porque isso o teria desagradado. Ele me chamava de
bonequinha e brincava comigo da mesma forma que eu brincava com as minhas
bonecas. Quando vim morar contido foi apenas uma transferência das mãos de meu
pai para as tuas. Tu sempre dispuseste tudo de acordo com as tuas preferências
e, por isso, fiquei tendo os mesmos gostos que tu, ou melhor, fingi que sim.
Não tenho muita certeza do que realmente é”.
Para Nora,
essa percepção vem acompanhada da constatação de que ela não sabe ao certo quem
é, porque sempre dependente de algum homem. Entende que deve ficar sozinha para
se conhecer e compreender e que precisa aprender a formar seu próprio conjunto
de valores e opiniões, em vez de aceitar as opiniões alheias, coletivas. Na
peça, sua decisão final é deixar o marido e os filhos e lutar sozinha para se
encontrar. Embora essa possa parecer uma solução radical (principalmente porque
Ibsen escreveu a peça em 1879),
mesmo agora as mulheres sentem muitas vezes a necessidade de deixar a família e
partir em busca de si mesmas. Compreender o significado desse ato como a
percepção de que não é suficiente existir em função dos desejos e projeções dos
maridos e que é necessário descobrir quem se é a partir de si mesma – é o mais
importante.
Pode muito bem ser que o pai, o marido e os
homens em geral tenham, em suas projeções, contribuído para essa visão
inadequada do feminino, mas a reação a essas projeções com atos de
culpabilização apenas perpetua as projeções de passividade e dependência. Existe
uma sombra a ser enfrentada, pois por trás da esposa cordata, existe uma
mulher forte que secretamente manipula o marido, como faz Nora. A tarefa é
começara a articular os próprios valores e opiniões e a aceitar conscientemente
a própria força, usando-a de forma criativa e às claras.
2- A MENINA DE VIDRO
Outra forma
de existência infantil é ser tímida e frágil, alheia à vida, em geral,
habitando num mundo de fantasia. Há muitas mulheres que passam a vida na esfera
da fantasia, talvez, animadas pela presença de um “amante imaginário” ou pela
força de um sonho místico, incapazes de entrar no mundo real e de se relacionar
com homens, prisioneiras da montanha de vidro de sua própria fantasia.
Em contraste
com o padrão anterior, no qual o pai se projetara demais sobre a filha e, para
quem a tarefa era libertar-se dessas projeções paternas e maritais, este padrão
implica um pai ausente. Nesses casos, não há relação com o masculino, não há
nenhuma influencia ativa e consciente com o pai, nenhum relacionamento com o
mundo exterior. A mãe pode até fazer isso a seu próprio modo, mas, muitas
vezes, ela mesma está vivendo na fantasia e não entende, de fato, a filha.
Desprovida de projeções masculinas e de uma relação com o masculino, a “menina
de vidro” cria seu próprio mundo, uma vida de fantasia que compensa seu
isolamento em relação ao mundo exterior.
Muitas
mulheres dão vida a esse padrão, mas é comum não nos inteirarmos dele porque
tais pessoas se escondem. Quando, porem, seu universo de fantasia vem à luz,
por um confronto com a realidade, é freqüente que apareçam na terapia.
Uma forma de
se ocultar do mundo prático e extrovertido é retirar-se para o universo dos
livros, em particular os de poesia e literatura fantástica.
Uma mulher
que tinha crescido na pobreza, com um pai ausente e, cada centavo que conseguia
ia para a sua coleção de animais de vidro e para os livros. Quando criança, sua
historia predileta era a de uma órfã que tinha ido morar nos Alpes com seu avo
cético e retirado. A protagonista era uma criança sociável e seu calor humano e
espontaneidade incutiram vida e amor no avo e numa garotinha doente, presa ao
leito. Ela era uma parte da personalidade dessa mulher, um lado que tinha sido
menosprezado durante sua infância, mas que, finalmente, emergira a partir do
momento em que sua autoconfiança aumentara. Por fim, ousou escrever para si
mesma e, por esse meio, acabou sendo conhecida na esfera pública. Depois teve
de enfrentar o circuito das palestras e passou por muitas fantasias de
ansiedade do tipo “menina de vidro”, nas quais desmaiava na frente da platéia.
Toda vez que fazia isso era um trauma, mas ela corria o risco e, dessa forma,
pode trazer seu mundo interior a uma vinculação com o exterior, partilhando
então sua visão particular da vida com outras pessoas.
3- A DESPREOCUPADA: DON JUAN DE SAIA
A mulher
despreocupada é outro padrão infantil. Essa menina vive de impulsos, tão
despreocupada quanto o vento, exuberante. Parece ser espontânea e solta,
levando uma vida louca excitante, ao sabor do momento, desfrutando o que
estiver acontecendo.
A
dificuldade para esse tipo de puella é que tenta viver por completo no domínio
das possibilidades, ignorando as limitações e as realidades dos outros e de si
mesma. O que ela precisa fazer, porém, é aceitar os limites e comprometer-se
consigo mesma e com algo fora de si. Aceitar o paradoxo da finitude e da
possibilidade é o caminho de sua resolução. Criar, através das varias formas
artísticas, é uma alternativa para atingir essa finalidade. Por exemplo, Anaïs
Nin transformou a existência de puella que havia em seu interior escrevendo,
dando forma a suas intuições, integrando, assim, possibilidade e realidade.
Buscou
psicoterapia uma mulher que estava apaixonada por um homem que também a amava,
no entanto, ele lhe havia dito que, enquanto ela não “se acalmasse” e formasse uma noção de seu valor como pessoa, ele não poderia considerá-la uma verdadeira
parceira. Sua finalidade era definir-se em vez de dispersar-se nos
relacionamentos, como costuma lhe acontecer. Seu padrão era ir de homem em
homem, e ela sentia que seu valor vinha do numero de amantes com quem dormia e
também de suas diferentes nacionalidades. Era muito espontânea e freqüentemente
ia para cama com quem mal acabara de conhecer na rua. Quando lhe pedia que
anotasse seus sonhos e os trouxesse à consulta, esquecia de fazê-lo ou os
anotava em antigas contas já pagas, em papel higiênico, em qualquer coisa que
estivesse à mão no momento. No plano de seu desenvolvimento, sua mãe a queria
“virgem” e seu pai não estivera emocionalmente próximo. Primeiro, tornou-se a
queridinha da mamãe, a “boa menina”; depois, revoltou-se e encarnou o lado
desconhecido dela. Em certo momento, teve um sonho no qual era um cachorrinho poodle frances, o animal predileto de
sua mãe, e esta lhe oferecia algo especial para comer, recheado de veneno.
Primeiro ela engole, depois vomita. Foi assim que se passou com ela em nível
psicológico. Ela queria ter sido o animalzinho de estimação de sua mãe, mas
vomitou o petisco “virgem”. Disso resultou sua virada de mesa completa e sua
atitude de dormir com todos que pudesse. Seu pai não estava próximo o
suficiente para lhe transmitir uma noção de seu próprio valor feminino. A
tarefa que cabia a essa mulher consistia em aceitar que estava se revoltando
contra a mãe através dessa vida de borboleta despreocupada, mas que isso, por
outro lado, a impedia de relacionar-se com o homem a quem amava.
4. A DESAJUSTADA
Outro modelo
de puella é a mulher que, em virtude de vergonha por causa de seu pai, é
rejeitada pela sociedade e/ou se revolta contra ela. Essa mulher pode estar
identificada com seu pai e permanecer ligada a ele de modo positivo; assim,
quando a sociedade o rejeita, ela rejeita a sociedade.
Na família
dessas mulheres é comum a mãe viver um papel critico, tornando-se a voz da
consciência do “mau pai”. Se a filha
manifesta algum tipo de comportamento semelhante ao do pai, a mãe irá
castigá-la, ameaçando-a com as mesmas fatalidades que se abateram sobre o
destino do pai. A menos que a filha siga o “bom conselho” da mãe, ela deverá
revoltar-se e reeditar o padrão paterno, repetindo seu lado autodestrutivo.
Dostoiévski
descreveu esse padrão em muitas de suas personagens femininas cujos pais eram
viciados de algum tipo. Parece-me que essas puellas em geral têm um “homem
subterrâneo” na linha de Dostoiévski vivendo em seu íntimo, que se recusa com
cinismo a assumir a possibilidade de ajudar e de mudar tanto a si quanto a
sociedade que o rejeitou.
É provável
que essas mulheres desperdicem suas vidas numa passividade inerte, entrando
talvez no caminho do álcool ou do vício das drogas, da prostituição,
alimentando fantasias suicidas ou talvez entrando em relacionamentos amorosos
doentios. É possível ainda que se casem com homens semelhantes ao pai e que se
desgastem com depressões e masoquismo diante de uma vida e de um relacionamento
desprovidos de realização. De algum modo, como Perséfone, essas mulheres foram
levadas ao escuro mundo subterrâneo de Plutão e lá permanecem com pouca ou
nenhuma força de ego e desenvolvimento de animus que as possa ajudar.
Arthur Miller
descreveu esse tipo de existência de puella em sua peça "Depois da queda", ao
compor a personagem Maggie, em parte com base em sua ex-esposa, Marilyn Monroe.
O paradoxo,
na raiz desse padrão puella, é que apesar de toda a real humilhação, vergonha e
rejeição de sua historia passada, de que resulta sua autoidentificação com a
vítima e com a desvalorização, o caminho da redenção está na luta contra essa
identificação, ao invés de viver compulsivamente a vergonha e a repetição do
padrão de rejeição. A tarefa é transformar a atitude de esperança, passando a
afirmar conscientemente a si e a vida.
Um exemplo
dessa atitude transformadora está no filme de Fellini "Noites de Cabíria."
Certa
paciente teve um sonho, no qual, a figura do avo lhe dizia que sua terapeuta a
havia diagnosticado como “aberração social”. Um de seus problemas era poder
aceitar-se e desistir do papel de menininha boazinha que havia desempenhado na
infância, principalmente tendo sido a queridinha de sua mãe. Estava implicado
nessa questão o fato de que precisava confiar na capacidade de ser quem
precisasse ser, independentemente dos julgamentos morais que sua terapeuta
pudesse fazer. Precisava desidentificar-se da imagem negativa que tinha a seu
próprio respeito, oriunda do comportamento de seu pai e do julgamento moral de
sua mãe.
5. O DESESPERO DA PUELLA
A maioria
das mulheres é bem capaz de reconher em si algumas das características dessas
modalidades de existência pueril, podendo ocorrer que um desses padrões
predomine em relação aos demais. Além disso, alguns dos padrões diferentes têm
traços em comum. Por exemplo, o aspecto de rebeldia é muitas vezes uma parte da
mulher despreocupada. A ênfase muito excessiva na conquista da atenção e da
admiração dos homens pode aparecer tanto na bonequinha queridinha como na
despreocupada e na desajustada. A ênfase na imaginação marca a puella tímida e
frágil, assim como a despreocupada, embora esta concretize no mundo os vôos de
sua imaginação, ao passo que a menina de vidro afasta-se do mundo para dentro
de sua imaginação.
Um elemento
comum a todos esses padrões pueris é o apego ou a uma inocência ou a uma
culpa absolutizada que são os dois lados de uma mesma moeda, capaz de alimentar
a dependência de outrem que reforce ou condene seus atos. Existe em todos a relutância em responsabilizar-se
pela própria existência, a ausência de tomadas de decisões e de
discriminações; é o outro que se incumbe disso. O relacionamento com os
limites e as fronteiras também é precário: ou há a recusa em aceitá-los (a
despreocupada e a desajustada), ou há a “ilimitada” aceitação (por exemplo, no
caso da tímida reclusa e da bonequinha queridinha).
A puella
conduz sua vida no âmbito das possibilidades e evita a realidade dos
compromissos. Permanecer no possível conduz a uma
de duas direções principais: para os desejos e os anseios ou para a fantasia
melancólica. A bonequinha queridinha e a despreocupada se inclinam na primeira
direção, enquanto a menininha de vidro e a desajustada vão na segunda. Em
todos os casos, porem, resulta a incapacidade de agir. Para que a ação seja
verdadeira, é preciso a síntese e a integração tanto da possibilidade como da
necessidade e é essa síntese, segundo Kierkegaard, que traduz um dos aspectos
fundamentais da pessoalidade.
A questão
central para a puella
é afirmar-se como a pessoa que realmente
é, já que sua tendência é conquistar
sua identidade (ou falta de identidade) junto aos outros. Para entrar em
contato com o mistério de sua alma, isto é, para “ser misteriosa” é necessário
que discrimine, com objetividade, entre suas potencialidades e verdadeiras
limitações, tornando, então, concreta a síntese resultante dessa percepção. A puella precisa aceitar seu potencial de
força e desenvolve-lo a fim de efetuar a concretização do mesmo; precisa
,ainda,comprometer-se com seu ser misterioso e singular.
A base do
problema pueril está no que Kierkegaard chama de “O desespero-fraqueza: o
desespero de não desejar ser si mesma”. A adaptação de ego da puella foi, precisamente,
ser fraca: ser passiva e desempenhar o papel desejado para ela pelos outros.
Assim que se torna consciente de seu padrão, a puella percebe que está
encarcerada, que foi barrada precocemente em seu desenvolvimento. Também,
percebe que tem algo com que contribuir para o mundo, embora ainda não haja
encontrado uma forma de fazê-lo. E como isso é frustrante: saber que se tem
algo a contribuir e não ser capaz de fazê-lo! Esse é o desespero-fraqueza que
pode levar a um recuso para dentro de si mesma, à adaptação ou à revolta. Mas
pode, também, propiciar a transformação.
RUMO À TRANSFORMAÇÃO
O
primeiro passo no
caminho da transformação desse padrão é tomar consciência de que se está fora
de contato com o Self, isto é, com as dimensões mais profundas existentes no
seu íntimo. Com um poder maior do que a força dos impulsos do ego. Denominar o
padrão dá à puella a perspectiva, a distancia de que necessita e o entendimento
das razões pelas quais permaneceu fixada em seu desenvolvimento.
Denominar é um
processo ativo.
Essa
conscientização vem acompanhada de sofrimento e do segundo e necessário
passo: o de aceitar esse sofrimento. Parte do problema da puella é sentir a
própria fraqueza e dependência, é se ver como vítima. Identificada como vítima,
recusa a responsabilidade e age como mocinha inocente. Por isso, a verdadeira
compreensão da fraqueza e a aceitação do sofrimento envolvem o confronto com a
sombra, com aquela parte da pessoa que é negada. A sombra da puella está vinculada ao poder, que ela não aceitou de fato, com responsabilidade. Muitas
vezes, esse poder é assumido por uma figura na psique, um velho
pervertido,figura mesquinha e de má índole que precisa, também, ser enfrentada.
Parte da aceitação do sofrimento implica um combate com essa figura. Faz parte
da aceitação do sofrimento perceber que esteve nas mãos desse velho perverso.
Por fim, o
último passo: a percepção de que, apesar de nossa fraqueza, temos em nosso
interior uma força, um acesso a esse poder superior aos impulsos do ego. Ou
seja, o passo final é aceitar a força do Self e essa aceitação implica
conscientização e escolha, escolha essa que não deve ser confundida com a força
de vontade do ego. Trata-se da escolha que acontece nos fundamentos mesmos de
nosso ser, em favor de aceitar o poder do Self. Para Kierkegaard, esse é em
última instancia um ato de fé a exigir toda a força da receptividade.
A questão
final é aceitar a força que existe no interior da própria pessoa e apoderar-se
dela, em vez de desistir e seguir os padrões pueris habituais de fuga,
afastamento, adaptação ou rebelião.
Onde é que a
puella encontra pela primeira vez a revelação de que há uma força em seu
interior? Tal revelação pode vir-lhe numa variedade de modos. As oportunidades
estão por toda parte. Portanto, o segredo é estar atenta e aberta a elas.
Em ultima análise
o que se exige de uma puella em seu processo de autotransformação é que
renuncie a seu apego à dependência, à inocência e à impotência infantis e que
aceite a força que já está ali: que
realmente se valorize. Se ela aceitar sua força e poder, sua inocência de
menina irá se manifestar como elã jovial e feminino, como vigor, como
espontaneidade e abertura a novas experiências que possibilitem um
relacionamento criativo e produtivo.”
Bibliografia:
“A mulher
ferida” – em busca de um relacionamento responsável entre homens e mulheres.
Leonard,
Linda Schierse