segunda-feira, 15 de março de 2010

O “Homem Interior”* – Animus

Alguns aspectos da contraparte da personalidade feminina


Mariana*, 60 anos, viúva há quase seis anos, quatro filhos, dos quais três estão casados, deixou a cidade de origem em função das grandes mudanças que sofreu após a perda do marido. Durante os anos de casada, sua vida continua girando em torno da família. Órfã de mãe aos treze anos, desde pequena, sempre ajudou a cuidar – a cuidar dos outros.
Ao mudar-se deixa pai, irmãos, amigos e uma história de vida para trás... É acolhida pelo irmão caçula e cunhada na empresa deles por aproximadamente três anos, na cidade vizinha a que mora atualmente. É demitida por conta da necessidade de redução de despesas da empresa que, naquele momento, enfrentava dificuldades. A partir daí, intensifica seu questionamento sobre o que fazer de sua vida.
Leva a termo o projeto de compra de um imóvel, fixando sua residência na região para a qual veio. Retoma a psicoterapia e a prática de atividade física, viaja, visita os filhos, netos, mas, não consegue se recolocar no mercado de trabalho. Os sentimentos de insegurança quanto ao seu sustento e futuro são intensificados. O tempo passa e ela se sente impotente, diante da nova realidade. A auto-estima é fortemente abalada, gerando angustia e Mariana não vê saída. Paralisa-se.
É orientada a buscar o voluntariado. Com muito esforço, consegue iniciá-lo. Como essa atividade é muito recente, ainda não é possível dizer nada sobre o que trouxe ou trará para sua vida. Ela, ao mesmo tempo em que tem elevada expectativa em relação a si mesma e a novas possibilidades de trabalho, sofre por esperar pouco do que parece possível.

“Com grande freqüência, a mulher não consegue identificar e integrar qualidades que a ajudariam a se sentir forte, dotada de recursos, com capacidade para investir em si mesma, a fim de se apropriar e sustentar a própria vida” (Linda S Leonard). Com Mariana não é diferente. Mas, por que, ela que sempre foi tão competente no cuidado do outro, não consegue se perceber capaz, não consegue ir em busca do próprio sustento e da alegria de viver? Por que não consegue desenvolver uma disciplina capaz de lhe dar uma direção e de levá-la a atingir seus objetivos?
“A consciência que as mulheres desenvolvem de si e do seu potencial de realização depende em grande parte do quanto a ajudem o próprio pai e a cultura a que pertencem” (idem). São eles que, inicialmente, contribuem para o desenvolvimento dos aspectos atribuídos ao princípio masculino presentes na personalidade de toda mulher. C.G. Jung chamou de Animus o lado masculino da personalidade feminina que a integra e complementa.
“Entretanto, nem toda mulher é incentivada a se desenvolver de forma consciente, autônoma e independente” (idem). Pelo contrário, há ainda muitas mulheres em nossa cultura buscando seu valor através da figura masculina; entregando ao homem a tarefa de confirmar seu valor pessoal. Outras, identificadas com o masculino, “subjugam em si mesmas qualidades e competências próprias do feminino, alienando-as de sua própria criatividade, de relacionamentos saudáveis com homens, da espontaneidade e da alegria de viver” (Linda S. Leonard).
“O lado masculino mal constituído divide-se em opostos que, alternados entre si, leva a mulher a oscilar entre sentimentos de autocomiseração, de depressão e de inércia. De um lado, ouve uma voz lhe dizendo que não é capaz e de outro, o apelo para que ceda à impotência e aos sentimentos negativos, como por exemplo: De que forma vou fazer isso?... Não presto para nada... Tudo que faço dá errado... Não tem jeito...” (idem)

Mas o que está por trás de uma auto-imagem tão negativa? O que torna e mantém as mulheres tão inseguras e pouco confiantes?

O princípio paterno fornece a noção de autoridade e de organização interna, quando ausente ou deformado, constela a oportunidade do aparecimento desses aspectos negativos do “homem interior”. “Ao acreditar nessa voz, inicia-se um círculo vicioso que perpetua a visão negativa de si mesma, como pessoa fraca e sem valor” (idem).
Do outro lado da mesma questão, isto é, quando os aspectos negativos do animus – “do homem interior” estão constelados, ” a mulher tenta incorporar o pai em si mesma e, não raro, exaure-se das batalhas e do trabalho que executa, de tal forma que o significado que um dia tudo isso teve para ela, é perdido... Carregar o tempo todo o peso de realizações, deveres, sacrifícios, negar seus impulsos em favor de objetivos mais valiosos tem preço muito alto! Por exemplo, é comum essas mulheres terem explosões de mau humor, sentirem dores de cabeça, ficar deprimidas” (idem) e serem surpreendidas por erros e enganos que não são facilmente perdoados por elas mesmas. “A raiva e os ressentimentos encontrados por debaixo dessa competência, eficiência e responsabilidade revelam a vulnerabilidade dessa mulher” (idem) que como aquela (que não acredita na própria força) “ tem dificuldade para dirigir seus esforços no sentido do seu auto-desenvolvimento” (idem).
Carol*, bravamente (em todos os sentidos) vem desempenhando o papel do filho que o pai gostaria de ter tido, apesar dos três filhos homens que teve. Ouviu varias vezes do pai essa confirmação. Filha de pai autoritário e déspota encontrou na identificação com ele um jeito de ser valorizada como mulher!Do seu ponto de vista, é ela quem da conta de tudo e de todos, tanto da família de origem como da que constituiu. Casada, com dois filhos, exerce com eficiência a profissão de engenheira, mas, sente-se sobrecarregada, pressionada, mal compreendida. Entretanto, não consegue delegar, dividir suas tarefas por acreditar que “tudo está com ela” e que será difícil alguém fazer como ela, principalmente no que diz respeito à administração da vida doméstica. Ao mesmo tempo em que exerce com veemência o papel de amazona, lamenta não ser vista como a mulher que precisa de cuidados, atenção, reconhecimento e valorização.
Sabe que precisa se aperfeiçoar para se manter no emprego – mas, não consegue imaginar-se com mais essa tarefa. Deseja sair do emprego, ressente-se por efetivamente ter que dar conta da família, uma vez que o marido está iniciando nova atividade profissional. Fato que reforça e incrementa a percepção de que sem ela, tudo desmorona. Quer evitar isso, mas muitas vezes, chega perto de “jogar tudo para o alto” de tanto cansaço. Pressiona o marido a atingir seus novos objetivos logo para que ela, enfim, possa descansar, cuidar de si, dos filhos, da casa... Do seu feminino!

É interessante observar as contradições dessas mulheres que vivem sob o julgo dos aspectos negativos do animus. Tanto um tipo como outro – a que nada pode e a que pode tudo -, revelam sérias limitações para assumir a responsabilidade pelo próprio desenvolvimento; ora atribuindo ao homem a responsabilidade pela sua realização pessoal, ora atribuindo a ele (ao outro, às circunstancias de vida...) a culpa ou a incompetência para tal. “O que precisam saber é que apesar das influencias que recebem dos pais, não são determinadas por elas, portanto, não precisam permanecer meros produtos deles” (Linda S. Leonard).
O potencial para a auto-realização existe em todos nós. "De acordo com Jung, existe na psique um processo natural de cura que se dirige ao equilíbrio e à totalidade. Os arquétipos, ainda segundo ele, são padrões naturais de comportamento que estão disponíveis como modelos internos, mesmo que os externos estejam ausentes ou sejam insatisfatórios"(idem).A transformação de padrões de comportamentos indesejados sempre partirá da aceitação das próprias fraquezas e limitações, dos próprios sentimentos e história de vida. “Uma nova humildade nasce dessa aceitação e propicia uma abertura para se penetrar no fluxo da vida” (idem).

Fluxo que se interrompe de tantas outras maneiras...

Valéria*, 30 anos,casada, sem filhos, a primeira a chegar à universidade tanto do lado da família da mãe como do lado paterno. Primeira filha de um casal de pouca instrução, aos poucos, permite-se usufruir das oportunidades que o novo estilo de vida lhe proporciona. Acreditando-se com poucas ferramentas para lidar com a nova realidade, sempre se sente muito medrosa; mas, com admirável disposição para o trabalho e para aprender. Conserva a essência simples e, apesar do novo padrão aquisitivo, pensa mais em poupar e investir para não faltar no futuro, do que gastar com bens de consumo mais imediato.
Muito dedicada como profissional, aperfeiçoa-se, dedica-se, procura e aceita os desafios necessários ao crescimento profissional, mesmo que nem sempre se sinta confortável no exercício dessas atividades. Descreve-se com tendencia a ser fechada em seu mundo, muito quieta e sem energia, principalmente, para viver os outros aspectos da vida. Tem interesse em fazer cursos na área da culinária, da moda, em se dedicar mais às pessoas, às atividades relacionadas à organização da casa... Mas... Acaba muitas vezes diante da TV sem levar a termo nenhum desses propósitos ou se ocupa de outra coisa que, geralmente, não tem nada a ver com os objetivos que planejou atingir. Não se permite “ficar sem fazer nada, com tanta coisa para fazer...”,apesar do cansaço do dia trabalhado. Sente-se desconcentrada, muitas vezes, sem foco, sem direção, sempre se propondo objetivos que não consegue levar a termo – o que a frustra e dá a sensação de incompetência – incrementando, assim, seu sentimento de inferioridade, de insatisfação e de tédio.

Aqui encontramos outro exemplo do círculo vicioso que se perpetua, confirmando a crença de que é uma pessoa fraca, que pode ficar desempregada e com dificuldades financeiras como o pai. A visão que tem dele confunde com a imagem de si mesma. O “homem interior” identificado com o pai não é suficientemente capaz de ajudá-la a organizar seu mundo interno, a dar um sentido para sua vida, para que possa, finalmente, usufruir de seus conseguimentos e de sua feminilidade.
Mariana, Carol e Valéria revelam aspectos negativos do animus que se alternam, fazendo com que elas e, tantas outras, oscilem entre sentimentos e comportamentos que as deixam presas e perdidas em si mesmas, impedindo – a elas e aos que as cercam – de relacionamentos saudáveis e da alegria de, simplesmente, viver a vida.















*Mariana, Carol e Valéria são nomes fictícios de pessoas atendidas em psicoterapia.
*A expressão “Homem Interior” é utilizada por Linda S. Leonard em seu livro: ”A Mulher Ferida – Em busca de um relacionamento responsável entre homens e mulheres”. Ed Saraiva.
*Linda Schierse Leonard é psicóloga junguiana, trabalha como terapeuta em San Francisco. Além da clínica particular, faz palestras e seminários sobre o tema “mulheres feridas” e tem diversos artigos publicados em jornais e revistas.