segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Separação e desenvolvimento humano



Desenvolver-se é enfrentar o medo da passagem da dependência para a autonomia, da obediência para a responsabilidade própria, da fusão para o distinguir-se, da simbiose para a individuação. Essa passagem implica em separação. E a maneira como reagimos às primeiras separações - com receio ou confiança – poderá indicar o quão competente seremos para lidar com as muitas que virão e o quanto seremos capazes de controlar a vida, a despeito do medo, ou seja, poderá indicar o quanto aprendemos a lidar com o medo.



"Quando a parte jovem da personalidade é reprimida gera medo e é transformada em medo" (C.G.Jung). Através dos sintomas das doenças do medo (transtornos de ansiedade, pânico, fobias) e da depressão, é possível chegar a esses aspectos da personalidade que não receberam a devida atenção.



Até mesmo aquele que foi incentivado, valorizado como o MAIS ISSO ou AQUILO  e que, portanto, foi acostumado a elogios e justificativas para os comportamentos menos admiráveis, pode ter nesse lugar a base de uma estrutura depressiva e das diversas doenças do medo. Os “fenômenos narcisistas” como mania de grandeza, suscetibilidade elevada, exigência de bastante atenção, também, tem aqui terreno fértil.



Tanto a estrutura depressiva, como também, as doenças do medo indicam que é dada pouquíssima atenção ao próprio ser; que a individualidade é experimentada de forma muito pouco atraente e responsável. A sensação de que é preciso sacrificar muito da indistinção prazerosa para atingir a individuação, é uma marca desse tipo de educação.



Incentivar o exercício de si mesmo, nas suas competências e características admiráveis; assim como, estimular hábitos que levem à superação das dificuldades de enfrentamento dos medos e dos comportamentos de esquiva são atitudes que favorecem a passagem da imaturidade para a maturidade esperada, dentro do desenvolvimento humano.











sábado, 14 de novembro de 2015

Divertida Mente e a ilusão da permanência

O desejo que tudo permaneça naquele lugar, daquele nosso jeito alimenta a ilusão que temos de que haja esse lugar de permanência.

A não aceitação da realidade, ou seja, de que estamos em constante mudança, de que vida é trajetória, é movimento cada vez mais aumenta a intolerância , o sofrimento do ser humano que anseia chegar logo a um determinado lugar para, finalmente, ter a vida que sonhou.

O desejo é impulso para, não tem forma acabada, não cessa de desejar. Portanto, querer que a realidade corresponda àquilo a que cada um idealizou  ou ao que o coletivo entendeu que era o melhor padrão para se viver é sofrer e fazer sofrer. Não há um estado constante de felicidade, não há juventude eterna, não há o trabalho perfeito, nem o homem, nem a mulher, o casamento, a família. Não há o que ou quem, finalmente, seja e esteja  no lugar que queremos que esteja e lá fique!

Pete Docter, diretor do filme de animação Divertida Mente, ilustra de forma simples e divertida as configurações que  os sentimentos formam à medida que as mudanças ocorrem em nossas vidas. Riley, a menina protagonista, muda de cidade, de casa, de escola e está entrando em outra fase do seu desenvolvimento. As coisas não saem como planejadas e o tudo que parecia, perfeitamente, em seus lugares não está mais. E, ainda, ficará "pior"!
A vida em departamentos estanques ou, em ilhas como Riley organizou a dela, faz parte da ilusão que tudo permanecerá como é  e sempre foi.

Os desarranjos provocados internamente, a maneira como um sentimento tenta assumir o controle sobre os outros, principalmente sobre a tristeza, para que tudo permaneça como era é uma oportunidade para  refletir sobre a importância da atenção para as sutilezas dos sentimentos na composição das atitudes mais apropriadas para cada situação nova das nossas vidas.

As imagens e a história contada nessa animação mostram, divertidamente, como as perdas, o desapego e a tristeza decorrente -tanto quanto o medo, a raiva e alegria - contribuem para o amadurecimento  ao lidar com a impermanência na vida. 

sábado, 26 de setembro de 2015

Contemporaneidade e sofrimento

Uma das formas de sofrimento na contemporaneidade, os chamados sofrimentos narcísicos, tem como ponto de partida o olhar do outro.
Mesmo que a criança receba os cuidados necessários, ela poderá sentir-se como uma "moldura vazia".  
Nao tendo do outro um olhar atento, interessado pelo ser que desabrocha, não tem o reflexo necessário ao desenvolvimento da sua autoestima e, principalmente, de quem é.

Ao invés, de sentir segurança e prazer em exercitar-se, ampliando assim suas possibilidades, acredita que se for diferente, se for como avalia ser o esperado pelo outro, conseguirá, finalmente, ser vista e admirada.

A idealização decorrente dessa crença acarretará comportamentos pouco espontâneos, sempre buscando aprovação e reconhecimento do outro.
Esse visto como quem pode dizer se a pessoa merece ou não fazer parte do grupo que vem de encontro com o eu idealizado, ainda, na vida adulta.

Nessa dinâmica: moldura vazia - idealização do eu - busca do olhar do outro (aprovação/desaprovação) o sofrimento instala-se e o eu verdadeiro permanece esmaecido, dentro de uma moldura.

O sofrimento decorrente desse modo de funcionar tem como sintomas  mais frequentes o excesso de ansiedade, a vergonha, a melancolia e a depressão.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

O que podemos?

Não me lembro o nome da brincadeira em que eram colocadas distancias, entre duas réguas, para que fossem ultrapassadas, em saltos. No início da brincadeira, as réguas estão próximas e, à medida em que são superadas, as distancias vão sendo aumentadas, aumentadas e os saltos cada vez mais difíceis até as pernas não conseguirem mais alcançar a meta, sem que os pés resvalem em uma das réguas.
Essa brincadeira me parece uma boa metáfora para o que assistimos, principalmente, no ambiente corporativo em relação às metas estabelecidas. 
A crença de que o impossível é possível alimenta uma crença na suficiência, na autossuficiência que, por sua vez, incrementa o amor próprio, fusionando assim, a esfera pessoal à esfera profissional. Buscar atingir essas metas, atingir um ideal muito distante do que é compatível com a natureza humana, com a natureza de cada funcionário,  levando-os a adoecer por acreditarem que estão aquém do esperado como profissionais e, principalmente, como pessoas chega a ser perverso.
Entretanto, "brincar disso" é o que, em algum momento, atrai boa parte da população que quer realizar seus projetos de vida, que muitas vezes, estão atrelados aos das famílias constituídas. Manter-se nos seus empregos é necessário. Como impedir que essa dinâmica se repita, repita sem que nada seja feito, inclusive pela falta de tempo gerada pelo sistema?
No modelo anterior onde se era "pai orientado" havia um freio interno que facilitava delimitar  o espaço entre o possível e o impossível. Hoje a crença no treinamento que nos leva a alcançar o ideal não permite que esse freio seja estabelecido nem externa, nem internamente. As pernas que se arrebentem! As réguas serão afastadas,  infinitamente. As metas serão colocadas e as pessoas serão levadas a crer que se não estão conseguindo atingi-las são inadequadas, insuficientes, descartáveis.
Reconhecer-se como pessoa com competências e incompetências, com habilidades e características mais apropriadas para essa ou aquela atividade, aceitar-se e ter respeito por quem se é, com um potencial limitado, assim como as pernas que tem alcance diferenciado, mas limitado em algum momento por serem pernas - pode ser o início do desenvolvimento de uma consciência crítica que leva o ser humano a não se ver com as lentes colocadas por um sistema que seduz o ego e o faz inflar de tal maneira que se ve capaz de pular qualquer distancia que lhe seja colocada. As pernas que se virem para saltar sem pisar na bola, ou melhor, nas réguas!

terça-feira, 14 de julho de 2015

Que mundo queremos?




Nascemos, somos educados e formados para a independência e realização pessoal. Passamos pelo processo de aculturação, socialização e profissionalização, visando o sucesso e a felicidade. Somos influenciados e influenciamos. Algumas dessas influencias repercutem de tal modo em nossa vida que mal damos conta do que é de fato nosso ou, o que é trabalhado para que passe a ser vivido como crença, valores, ideais pessoais.

Houve tempo em que se creditava à autoridade, à lei poder que ditava o que era certo e errado, provocando conflitos entre o proibido e o prazer, numa sociedade que tinha claros valores, papéis, comportamentos. Em um mundo "pai orientado", usando uma expressão de J.Forbes, os conflitos davam-se entre o proibido e o prazer. Era  para o superego que tínhamos que prestar contas. A culpa, o sentimento que tínhamos que reparar ou expiar. O ego era só um coadjuvante nessa luta entre o prazer e as interdições internas e externas.
Submetidos à essa autoridade introjetada sofríamos sim, mas tínhamos  melhor delineado o que era esperado de nós em cada fase de nossas vidas. O desafio de vir a ser Si-mesmo era mais possível.

As mudanças ocorridas nos anos 60, 70 acarretam outro tipo de sofrimento e configuram outro mundo.Com a queda da autoridade, da Lei achamos tudo natural, acreditamos que tudo podemos. Nascem os empreendedores de si mesmos: os proativos, autônomos e independentes. O ego, agora, passa a ser protagonista. Em menor escala o sentimento de culpa continua presente; entretanto, a vergonha de não ser tudo que o ego acredita ser possível, coloca o narcisismo no mercado como moeda de troca.
O sentimento de suficiência e insuficiência alimenta esse ideal de ego, que nunca cessa de sugar vida daqueles que disputam com "sangue nos olhos" um lugar nesse mundo, onde não há tempo para se dedicar ao que dá sentido e significado à própria vida; onde tudo é possível, porque "você merece"!

domingo, 19 de abril de 2015

O sacrifício da filha

O sacrifício de pai e filha tem suas raízes na dominação do feminino pelo poder masculino. Quando o masculino é desprovido de valores femininos, quando não permite ao principio feminino manifestar-se a seu próprio modo, a partir de seu centro natural, quando não concede ao feminino a multiplicidade de suas formas, mas o reduz apenas àquelas que servem à finalidade masculina, o masculino perde sua relação com os valores da dimensão feminina. É aí que o masculino se torna brutal e sacrifica não só a mulher exterior mas, também, o lado feminino interior.

A cisão no masculino cria o desejo pelo belo e o anseio pelo poder. A cisão masculina resultante nessas duas metades reduz o ideal feminino à beleza e à obediência.

A atitude de ser una consigo mesma é uma atitude interior da feminilidade centrada e independente. Muitas mulheres ainda hoje vivem para os homens e não para si mesmas. Entretanto, há aquelas que num movimento de reação, a fim de concretizar essa ruptura imitam o modelo masculino, perpetuando dessa forma a desvalorização do feminino. Outras, sentem-se impotentes e se enfurecem podendo ser extremamente obedientes e respeitar o sistema, mas no íntimo, manifestam sua raiva, por exemplo, eliminando o sexo, tendo casos amorosos extraconjugais por vingança, ultrapassando o limite de cartões de credito do marido, bebendo demais, adoecendo e assumindo uma postura hipocondríaca, depressiva, suicida, etc.

Talvez, a maior ferida que o homem sofra seja a de não admitir sua própria ferida. Muitos pais alimentam a ilusão de que devem ter sempre razão e justificativas para manter o controle e a autoridade. Perderam o poder de suas lagrimas e não souberam honrar seu próprio lado jovem, terno e feminino.

A relação harmônica entre os princípios masculino e feminino - o espirito - ainda não foi encontrada como agente eficaz nas vidas da maioria das pessoas.

Em nossa cultura, existem muitas mulheres sofrendo uma visão limitada da feminilidade, uma perspectiva estreita intimamente ligada à trama cultural e às posições existenciais dos pais e das mães. Essas mulheres muitas vezes sentem raiva e tomam consciência de que as imagens atribuídas às mulheres em nossa cultura patriarcal foram influenciadas por uma relação inadequada dos homens com a feminilidade. Apesar disso, sentem-se presas e impotentes.

As mulheres que, por outro lado, sabem como se sair bem no mundo masculino, que tem capacidade para trabalhar duro e serem úteis, que conquistam sua independência financeira,muitas vezes, sentem-se cansadas de ser fortes e anseiam por alguém que tome conta delas. Conscientemente, desempenham o papel da amazona de couraça; intimamente, desejam ser a bela, a eterna menina desejada pelos homens.Entretanto, muitas delas, no fundo, não aceitam a projeção de feminilidade feita pelo pai cultural.

O êxtase do feminino, onde se encontra uma fonte de poder autentico, que não tem necessidade de recorrer à aceitação por parte de algum homem externo ou de alguma instituição patriarcal pode ser expresso por Mirabai, poetisa hindu.Ela expressa em um dos seus poemas a experiência extática de uma mulher que sente sua própria centralidade feminina e o espirito que o anima. Robert Bly, poeta e tradutor de Mirabai para o inglês, escreve:" na autoconfiança que ela sente, desaparece a autopiedade". (O poema referido intitula-se "Por que Mira não pode voltar para sua antiga casa")

Em outro momento, falei sobre a eterna menina, a puella. Aqui, apresento características da amazona de couraça.

A cultura das amazonas, segundo a lenda, desvalorizou os homens ao eliminá-los de todas as posições de comando. Era comum faze-los escravos e usá-los como meio impessoal de procriação.
A figura masculina era despotencializada tanto física como socialmente. Os homens não eram necessários nessa sociedade porque as amazonas assumiram todas as funções masculinas. Tinham a reputação de serem conquistadoras e caçadoras, guerreiras selvagens e corajosas, e montavam em seus cavalos com toda a audácia. Treinavam suas filhas para seguirem o mesmo padrão. Segundo a lenda, removiam o seio direito para que pudessem manusear o arco e a flecha com mais eficiência. Segundo alguns autores, as amazonas eram filhas de Ares, o deus da guerra e da agressividade e, portanto, tinham essa postura bélica na vida e se viam como "guerreiras".

A amazona moderna foi descrita por June Singer em seu livro ANDROGYNY (Androginia) da seguinte maneira:
"A amazona é a mulher que assumiu características em geral associadas à disposição masculina, mas, em lugar de integrar os aspectos 'masculinos' que poderiam fortalece-la como mulher, ela se identifica com o poder 'masculino'. Ao mesmo tempo, renuncia à capacidade de se relacionar de modo amoroso, qualidade que tradicionalmente é vinculada ao feminino... de tal sorte que a amazona que assumiu o poder, na medida em que nega a capacidade de relacionar-se amorosamente com outros seres humanos, torna-se unilateral e, por conseguinte, é a vítima do próprio atributo que tentou suplantar".

Nosso tempo viu surgir uma reação feminina contra "Os Pais", reação essa dirigida contra a posição coletiva de autoridade masculina. Essa autoridade desvalorizou o feminino a tal ponto que mal consegue funcionar como espirito responsável e relacionado; em vez disso, tem sido irracional e unilateral em sua rígida visão do feminino. Essa tendência para a identificação e imitação do masculino nega as diferenças entre homens e mulheres. Quando as mulheres esperam alcançar as vitorias dos homens sendo como eles, a singularidade do feminino sofre uma sutil desvalorização, pois existe um pressuposto subjacente de que o masculino é mais poderoso.

..."Algum dia...algum dia haverá meninas e mulheres cujos nomes já não significarão apenas o oposto do masculino, e sim algo em si próprio, algo que leve as pessoas a pensar não em alguma forma de complemento e de limite, mas somente na vida e na existência: o ser humano feminino" (Rainer Maria Rilke, Letters to a Young poet, 1904)

Linda S.Leonard, descreve algumas modalidades de existência da reação amazônica diante do pai negligente, ou seja, as 'couraças de amazona' que protegem a mulher do pai irresponsável. Entretanto, ela não entende essas modalidades como tipos ou categorias dentro das quais as mulheres se enquadram com perfeição. São descrições fenomenológicas de alguns modos diferentes de comportamento, passiveis de se manifestar na vida das mulheres como resultado de uma reação ao pai negligente.


A SUPERSTAR

A reação ao pai mais frequente é a que leva a mulher a estabelecer sua identidade, através da relação com o trabalho; a que a leva a configurar um padrão bastante conhecido das viciadas em trabalho - o padrão workaholic. Em consequência, essas mulheres distanciam-se de seus sentimentos e recursos instintivos, o que muitas vezes resulta em depressão, perda de seu sentido de vida, pois que, em ultima analise, a identificação somente com o trabalho não basta.
Essa estratégia, muitas vezes de sobrevivência, de desenvolver o lado masculino e recolher uma identidade a partir dos resultados de suas conquistas profissionais, faz com que as superstars sintam que deixaram de lado a sensação feminina, isolando-a deste modo de seu próprio significado e existência como mulher.
A exagerada compensação na área profissional e das realizações não só elimina o principio feminino, como também, o aspecto espiritual da masculinidade. Para entrar em contato com este é preciso que antes aconteça o retorno aos sentimentos e aos instintos femininos. Ao se religar com o feminino, o trabalho pode assentar em bases adequadas.
A questão crucial é perceber o valor que tem a religação com o feminino, compreendendo o que é essencial para a mulher e valorizando esse dado.


A FILHA CONSCIENCIOSA

Embora, a imagem da filha conscienciosa crie a ilusão de bondade e virtude, também, nega a sombra e toda sua vida e criatividade. Nega uma expressiva parte da personalidade e, em ultima analise, o vinculo com o Self. Não é de admirar que tantas vezes aconteça a exaustão, a aridez e a ausência de significado. Por isso, essas mulheres costumam viver por trás de uma persona, moldada por uma imagem que na verdade não é a sua e que esta limitada ao dever, em muitas vezes, também a uma estrutura autoritária bastante estrita.
Para desencouraçar ou descartar a persona implica abrir-se e exibir os próprios lados sombrios e fracos, que foram suprimidos ou reprimidos pela obediência a uma autoridade forte e rígida. Esse  processo determina a perda do controle estipulado pela obediência e envolve uma certa margem de perigo, pois a dimensão anteriormente negada é subdesenvolvida e primitiva. Se esse processo de abertura não acontece em nível consciente, pode emergir de uma para outra em forma de colapso muitas vezes.
A filha conscienciosa geralmente se encontra a serviço de outrem, em detrimento de suas próprias possibilidades criativas e/ou de estabelecer relações.
A questão principal para as mulheres que caíram no padrão da 'filha conscienciosa' é perceber que o padrão de dever lhes foi imposto por outra pessoa. Para elas é importante que se deem conta de que essa imagem foi projetada e que não é sua de fato.


A MÁRTIR

Esse estilo de vida é marcado pela limitação e pelo ressentimento passivo, geralmente encoberto por uma fisionomia marcada por prolongados sofrimentos. Não é incomum essa mulher fazer o papel de santa martirizada em seu casamento, guardando silencio, jamais enfrentando o marido, suprimindo tanto a raiva como a alegria e, com essas emoções, sua sexualidade.
Devido à adaptação martirizada, essa mulher ve-se constrita pela limitação dos valores coletivos que inibem sua individualidade e sua singular beleza feminina.
Um dos principais aspectos do estilo de vida da mártir é ser uma escrava trabalhadora, como esposa, mãe ou em ambos os domínios.
O padrão mãe mártir aparece em geral, quando a filha ouviu a mãe criticar e menosprezar o pai continuamente, tachando-o de fraco e negligente. Se o pai não se opôs a isso com empenho, é comum que a filha assuma a atitude materna, consciente ou inconscientemente. Esse tipo de mulher entra no papel de mãe diante do marido, que, então, fica reduzido ao status de filho.
A autonegação é a estrutura principal dessa estrutura de personalidade. No papel de mãe-mártir existe traços de masoquismo passivo-submisso que encobrem um sentimento de superioridade, hostilidade e desprezo pelo homem.
O martírio é uma espécie de reação de defesa contra o fluxo das experiências. A mártir quer que a reconheçam e se apiedem dela por sua autonegação, fazendo um jogo com o sentimento de culpa dos que a cercam.

Essa mulher precisa se permitir entrar conscientemente no fluxo das experiências que incluem tanto a sexualidade como os impulsos criativos, reconhecendo-os, aceitando-os e formando-os. Precisa assumir uma responsabilidade ativa por sua própria força, em vez de usá-la de forma defensiva contra si e os outros e, assim, concretizar suas energias criativas.


A RAINHA GUERREIRA

Outra modalidade ainda de reação ao pai é tornar-se uma guerreira forte e determinada. Nesse caso, a filha se opõe a toda a irracionalidade experimentada como degeneração no pai e luta contra ele. Esse pai pode sacrificar a filha como reflexo de ausência geral de espirito. Seus principais interesses podem ser festas, acumulo de dinheiro e ambição por novos bens. Não dedicando tempo algum às filhas, pode estar expressando seu desgosto por elas nãos serem filhos. Quando se envolve com elas, a relação pode assumir a forma de terríveis explosões de ira e xingamentos. Em reação à destrutividade do pai negativo, consolida-se uma consciência rígida e negativa e a rejeição dos sentimentos e da vida.
Essa mulher tende a ser amarga e pode se dar conta de que só vive para trabalhar. É uma rainha triste e solitária que escolheu ter a vida de um homem. Dentro desse padrão de guerreira, o pai e, em geral, todos os outros homens são rejeitados e desprezados como seres fracos e a filha acha que só ela é forte o suficiente para fazer o que precisa ser feito. A ironia está em que o caminho dessa força é moldado por um modelo masculino e, por isso, o feminino ainda continua sendo desvalorizado por esse tipo de mulher.
É bastante comum perceber-se nesse tipo de mulheres os dentes rangendo, a determinação inabalável. Para as que vivem segundo esse tipo de existência, a vida se torna uma missão e uma serie de batalhas a serem vencidas, em vez de uma sucessão de momentos a serem desfrutados. Talvez esse seja o padrão adotado pela maioria das militantes quando insistem que não há diferenças entre homens e mulheres e reduzem a receptividade a uma passividade débil.
Aqui o ponto crucial é integrar suas forças de rainha guerreira, não através de um sistema armado de defesas; ao contrário, essa integração deve acontecer por intermédio de seu lado mais suave, para que essas forças passem a estar disponíveis de um modo feminino forte, que a expresse como mulher.



O DESESPERO DA AMAZONA DE COURAÇA

Quais são os traços comuns da amazona de couraça? O principal é seu desejo de controlar. Como costuma ver no homem uma pessoa fraca e impotente reage contra o uso irracional de poder que o caracteriza, apossando-se do poder. Estar no poder torna as coisas seguras, para que tudo esteja a salvo. Junto com o controle costuma vir uma dose exagerada de responsabilidades, deveres e sensação de exaustão. A necessidade de controle, geralmente, deve-se ao medo do irracional - que é assim, eliminado tanto quanto possível do âmbito de sua vida.Mas, quando isso acontece, ela se sente alienada da espontaneidade e do inesperado que são os elementos que dão sabor e encanto à vida.

Outro traço é estar distanciada dos sentimentos e das relações, pois sua necessidade de controle não lhes permite vivenciar tais coisas. Sempre que predominar essa atitude controladora, haverá uma separação das raízes mais profundas da criatividade e da espiritualidade.

Não é de se espantar, por conseguinte, que as amazonas terminem achando que a vida se tornou árida e destituída de significado.Também, não é de se surpreender que as forças espontâneas, até então reprimidas e suprimidas, subitamente se manifestem para se afirmar e desestabilizem a estrutura psíquica vigente, na forma de uma depressão ou de um ataque de ansiedade, e da sensação de que não é mais possível enfrentar as coisas.

Predomina na atitude amazônica uma ênfase excessiva sobre limitações e necessidades. Kierkegaard descreveu essa atitude como uma forma de desespero que chama de 'o desespero na necessidade': um distanciamento em relação à totalidade da pessoa acontece quando ela se identifica com a finitude e com a necessidade a ponto de negar as possibilidades, inclusive a possibilidade essencial do Self.

A postura da amazona de couraça é na verdade desesperada e sobre-humana. Por isso acontece o colapso dessa simulação de força com uma certa frequência. O desafio crucial das amazonas é aceitar a fraqueza, a depressão e a incapacidade de trabalhar e funcionar. É muito comum que isso represente um encontro com a própria ira e lagrimas, apesar da vergonha que se possa sentir pela própria fraqueza e falta de controle, aceitar a validade dos próprios sentimentos, propicia condições de fornecer uma nova humildade que as faça abrir-se e penetrar no fluxo da vida.


A CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO

É claro que o colapso total de uma amazona de couraça é uma situação radical. O que se espera é que haja uma transformação consciente antes desse colapso. Como poderá ocorrer essa transformação? Como é possível à mulher prisioneira de uma couraça de amazona se libertar?

Primeiro passo: ver em que tipo de armadura ela está presa. Sem essa identificação, continuará alimentando o padrão de se defender daquilo que tem por dentro. Ela vai precisar aceitar sua sombra de fraqueza. Diferente da puella, cuja postura consciente é a fraqueza, a adaptação do ego da amazona é a força e o poder. Porém, por baixo da concha de força é comum encontrarmos impotência, dependência e uma carência avassaladora, capaz de consumir os que estão a sua volta. 
A mártir se mascara de trabalhadora sofredora, mas, por dentro, é vítima da autocomiseração e quer que os outros sintam pena dela. A força da superstar está em suas realizações e conquistas, mas, quando estas perdem o significado, como é comum que aconteça porque muitas vezes são artifícios do ego para conseguir atenção, a probabilidade é que essa mulher entre numa dimensão de incapacidade para qualquer coisa. A confiável obediência da filha conscienciosa para trabalhar e colaborar com as exigências alheias pode encobrir uma revolta interna e o desejo de fugir. Sentimentos capazes de fazer ruir seu mundo organizado, deixando que ela e os outros fiquem à mercê da confusão e do caos. A natureza de gelo da rainha guerreira pode de repente derreter sob o sol de uma ligação emocional capaz de devastar tanto a mulher como o outro, porque é um vínculo de dependência totalmente possessivo.

Aceitar a sombra de fraqueza não significa entrar permanentemente na posição de puella , embora isso possa ser uma etapa necessária ao seu desenvolvimento. A amazona já desenvolveu bastante força e poder em sua vida, e isso tem um grande valor. Sua questão é levar essa força até à área  da qual tem medo. Não é fraqueza permanecer no âmbito do irracional, assim como não é fraqueza usá-lo como fonte de conhecimento. Pelo contrario, fraqueza é ser incapaz de confrontar-se com esse aspecto da vida. Se a amazona puder aprender a valorizar sua vulnerabilidade e os aspectos incontroláveis de sua existência, poderá criar uma nova fonte de forças.

Segundo passo: libertar-se da ideia de que precisa ser como um homem para ter poder.
Muitas amazonas são dominadas pela reação a um pai inadequado, tanto em nível cultural como pessoal. Sendo assim, é natural que uma identificação de ego com o masculino possa compensar aquilo que ficou subdesenvolvido em função do pai. A tendência que prevalece aqui é desenvolver a modalidade heroica de existência numa intensidade razoável. A amazona identifica-se, essencialmente, com o masculino heróico, e essa identificação precisa ser constatada e desmantelada. Se a amazona não pretende ter um esgotamento, precisa suavizar sua couraça; com isso terá mais facilidade em encontrar uma forma criativa de relacionar-se com o feminino e com a feminilidade dos homens, para que não fique destituída de relacionamentos.

A couraça da amazona pode ser suavizada por uma figura masculina amorosa. Essa imagem, 'o homem com coração' pode ajudar a mulher a encontrar dentro de si esse homem que gosta de mulheres e que consiga criar uma atmosfera gostosa, aconchegante e confortável. Casanova , o amante que amou muitas mulheres e fez com que todas se sentissem femininas e adoradas, poderia ser a imagem da figura masculina interior positiva, que faz a mulher se sentir bem a seu próprio respeito.
A mulher presa dentro da couraça da amazona está lutando contra a imagem do dom Juan, do 'velho pervertido', imagens do masculino que despreza as mulheres e sai pisando duro quando elas se mostram confiantes e atribuem valor a si mesmas. Nessa luta, porém, ela vai endurecendo. Por outro lado, o toque terno de Casanova tem uma relação sensível com o feminino. Com essa imagem, ela pode responder de modo criativo e receptivo e essa resposta procede do centro vigoroso de sua própria feminilidade.
Talvez esse aspecto masculino mais suave e delicado pareça primeiro um parvo, um tolo fraco e ineficiente que não sabe como fazer as coisas Mas, é justamente o novo e o desconhecido que tendem a faltar na vida da amazona, porque é disso que sua couraça a protege.

Em contraste com a puella, cuja tarefa de transformação consiste em aceitar sua força e desenvolve-la, a transformação da amazona envolve o ato de se suavizar e acolher a receptividade para poder, então, contar com a integração desses elementos à força que já está desenvolvida, em favor da manifestação criativa de seu espírito feminino.





Texto adaptado do livro de Linda Schierse Leonard, A MULHER FERIDA. Ed Saraiva