Atualmente, o narcisismo é tido como sinônimo de autoestima elevada entre
um número cada vez maior de pessoas. Essa percepção fez com que buscasse no mito de Narciso uma
compreensão melhor desse fenômeno.
Ovídio, poeta romano,
que viveu entre 43 aC e 17 ou 18 dC, conta que Narciso aos dezesseis, dezessete
anos podia ser tomado quer como garoto, quer como homem. Muitos jovens e muitas
donzelas procuraram o seu amor; mas, naquela esbelta forma, era tão frio o
orgulho que não houve jovem ou donzela que lhe tocasse o coração. Uma dessas
jovens rejeitadas pede aos céus que ele possa amar a si mesmo e não obter
aquilo que ama. A deusa Nêmesis ouve e atende essa justa prece.
Narciso, exausto pela caça e pelo calor é atraído certa vez
para perto de uma fonte de água límpida, cuja superfície perfeita, jamais havia
sido maculada por ave, besta ou galho caído. Enquanto tenta aplacar sua sede,
outra sede o acomete e, enquanto bebe, enamora-se pela visão da bela forma que
vê. Qual seria
hoje essa superfície que reflete a imagem que gostaríamos de ver refletida.
Essa imagem esculpida, trabalhada, produzida de forma a “causar”?
Que imagem
Narciso vê refletida? Por quem se enamora? Ele enamora-se da visão, da bela
forma que vê. Ele ama uma esperança sem
substância e cre ser substância o que não passa de sombra. Estendido no
solo observa seus próprios olhos, estrelas gêmeas... E seus cabelos? Dignos de
Baco, de Apolo...Observa suas bem talhadas faces, seu pescoço de marfim, a
gloriosa beleza de seu rosto, o rosado combinado à brancura da neve: enfim, tudo aquilo que nele provoca
admiração é por ele mesmo admirado. Ele não sabe o que vê, mas arde de amor
por essa imagem - a mesma ilusão que zomba dos seus olhos e o enfeitiça.
Não é isso que observamos cada vez mais: pessoas amando a
imagem que veem refletida em espelhos ou nos olhares que provocam?
Nessa parte
do mito, Narciso é questionado: Ó jovem, apaixonadamente tolo, por que buscas,
debalde, abraçar uma imagem fluida? Aquilo que procuras não está em parte
alguma; mas, dai as costas e o objeto de seu amor já não existirá.
A angústia de Narciso assemelha-se à das
pessoas que ao não se sentirem admiradas, desejadas e ao não se verem
refletidas pelo outro como imagem excepcional e exclusiva, acreditam-se vazias,
sem importância. Muitas descrevem uma sensação de não existência, vivenciando
assim, uma grande angustia existencial.
Continua
Narciso “O próprio [objeto do meu amor] está ávido por ser abraçado. Pois,
sempre que estendo meus lábios na direção da luminosa onda, ele, com a face
levantada tenta chegar com seus lábios aos meus. Diríeis que ele pode ser
tocado – tão frágil é a barreira que nos separa os corações apaixonados. Quem
quer que sejas, vem até mim! Por que, jovem ímpar, me escapas? ...
– Oh! Eu sou
ele! Eu o senti, conheço agora minha própria imagem. Ardo de amor por mim
mesmo; eu mesmo provoco chamas e sofro o seu efeito. Que devo fazer? Devo
cortejar ou ser cortejado? E, afinal, para que faze-lo? O que eu desejo, eu tenho; a própria abundância da minha riqueza me
faz mendigo...”
Narciso, desesperado, golpeia com suas próprias mãos o peito nu...
Segue o mito: Ele deitou sua torturada cabeça na
verde grama e a morte fechou os olhos que se maravilharam à visão da beleza do
seu senhor. E mesmo quando foi recebido nas moradas infernais, continuou a
fitar sua própria imagem na fonte do Estige...
O corpo de
Narciso não foi encontrado para ser colocado num ataúde. Em seu lugar,
encontraram uma flor, cujo centro amarelo estava cercado de pétalas brancas.
O mito de Narciso revela um
importante aspecto do narcisismo: a busca na realidade externa de si mesmo , como se o
Si-mesmo (o Self) estivesse fora, em alguma parte ou em alguém, que não em si: “Aquilo que desejo, tenho.”
Estar separado de si, ou seja, não
conhecer a si mesmo ou, ainda, não se apropriar de si mesmo, são condições que
têm levado cada vez mais pessoas a essa busca que o mito de Narciso tão bem descreve.
Se Narciso pudesse sentir sua existência, seu valor, sua maneira de ser,
independentemente, dessa imagem fluida que lhe é refletida, como uma esperança sem
substância, não teria encontrado na morte a solução para seus problemas.
A morte no narcisismo é a sensação de vazio
que angustia aquele que não se vê refletido. Lembrando mais uma vez: “O que procuras não está em parte
alguma; dai as costas e o objeto de seu amor já não existirá.”
Sem dúvida, pessoas conscientes de
si e de seu valor, são mais maduras e capazes de relacionamentos saudáveis.
Escolhem com maior facilidade aquilo que as satisfaz, aquilo que vem ao encontro de sua maneira de ser, sentir e pensar a própria vida e a realidade
que as cerca.
Schwartz- Salant, Nathan
Narcisismo e Transformação do Caráter - A Psicologia das Desordens do Cárater Narcisista
Ed. Cultrix